Em tempos de intensa produção audiovisual com a popularização das plataformas de streaming, a sensação é de que estamos presos às mesmas histórias há anos
Por Isadora Nascimento e Juliana Teixeira
Última semana de novembro de um conturbado e inigualável ano de 2020. As primeiras novelas da Rede Globo de Televisão retomaram a produção durante a pandemia já em ritmo de finalização, mesmo com os constantes casos confirmados de Covid-19 entre a equipe. Produtoras ao redor do mundo voltaram a rodar as séries e filmes para os streamings e cinema, ainda que uma segunda onda de transmissão esteja batendo à porta. A pressa em criar conteúdo para alimentar um público sedento por novidade e cansado das reprises, como os números bem demonstram e o faturamento sente.
Em meio a isso, uma notícia parece ter passado despercebida entre os amantes e críticos das obras audiovisuais brasileiras: a mudança do diretor de teledramaturgia da principal produtora de conteúdo cultural do Brasil, Rede Globo. A surpresa, no entanto, não está na saída, já anunciada como aposentadoria, do autor Silvio de Abreu, mas sim em quem vai substituí-lo. José Luiz Villamarim, um cineasta mais conhecido por seu trabalho recente como diretor das chamadas superséries – ou novelas das 23h – aclamadas pela crítica, mas com um alcance de público muito específico, como “Amores Roubados”, “Justiça”, “Onde Nascem os Fortes” e “Amor de Mãe”.
A surpresa reside no fato de que Villamarim é, talvez, o diretor que mais tem ousado e fugido do tão celebrado, mas, ao mesmo tempo, estigmatizado “Padrão Globo de Qualidade”. Narrativas distantes geográfica e socialmente do eixo Rio-São Paulo, predileção por artistas pouco conhecidos do público em geral e histórias que pouco usam a fórmula maniqueísta mocinho-vilão buscam se aproximar dos modelos das produções seriadas cada vez mais populares entre uma parcela significativa da população, inclusive do público brasileiro.
Mas o que a escolha de um nome com o perfil do cineasta pode revelar sobre o futuro da produção audiovisual do Brasil? Ainda que os serviços de streaming tenham ganhado cada vez mais espaço e modificado a configuração do mercado de arte no país, conduzindo-o a tendências internacionais, não podemos negar a relevância e o lugar de monopólio que uma emissora como a Globo ocupa em um país como o nosso. O que é produzido nos estúdios do principal grupo de televisão tupiniquim ditou, durante muito tempo, a produção cultural quase que completa desse país.
As histórias ambientadas na cidade maravilhosa, Rio de Janeiro, o cartão-postal do Brasil. Ou então na megalópole em pleno desenvolvimento, São Paulo. Os enredos em torno da mocinha batalhadora que não consegue realizar seus sonhos pelas barreiras impostas por uma vilania sem medida – e sem razão concreta, na maioria das vezes. E a construção de um elenco próprio e fixo com o que a emissora nos pauta dizendo serem os maiores nomes das artes cênicas do país.
Assim, se criou o tão celebrado e almejado padrão globo de qualidade, que conduziu a atuação não só da própria emissora, mas também de outras produtoras em direção a esse patamar de qualidade de produção referente aos aspectos técnicos e artísticos. E é aqui que propomos a reflexão: o que é realmente régua para um padrão de qualidade e o que se tornou vício de produção para fidelização de um público? Até onde estamos consumindo mesmo um produto de qualidade ou estamos apenas acostumados a determinados processos produtivos? E quando o produto, realmente, apresenta qualidade, será que ele não se torna exaustivo, sendo padronizado nos demais produtos?
Sabe aquela sensação de que a Juliana Paes e outros tantos atores e atrizes estão sempre aparecendo na programação da televisão? E sempre interpretando tipos de personagens semelhantes, como Rodrigo Lombardi e seus heróis das histórias, donos da verdade e da moral; e Chay Suede e os mocinhos que sempre são os últimos a saberem da grande trama da história. Em que medida são figuras queridas e pedidas pelo público ou produzidas para serem vistas assim? A sensação é: mesmos atores, ciclo produtivo apenas se reproduzindo, sem busca de novos elementos sequer nas atuações.
E se os atores estão sempre fazendo mais do mesmo, com o potencial artístico e possível talento pouco explorados, significa que o que estamos assistindo são sempre os mesmos enredos centrais: às 18h, as histórias de época ou com narrativas mais leves e solares; às 19h, as comédias pastelão, com o escapismo suficiente para encarar a realidade nua e crua no telejornal; e no horário nobre, o bem x mal posto em sua máxima expressão.
Por isso, retornamos ao primeiro questionamento: o que um diretor de séries tão celebradas pela crítica vai poder fazer de diferente em uma fórmula que, apesar de em decadência, ainda é o trunfo do sucesso de boa parte das obras audiovisuais deste país? Vide “Amor de Mãe”, com uma narrativa bem diferente das novelas, sucesso de crítica, mas que não arrebatou os corações do público, especialmente como sua antecessora “A Dona do Pedaço”.
E mais: as produções dessas séries, principalmente para os streamings, acontecem de modo tão diferente das novelas para serem tão aclamadas por uma parte do público que rejeita estas últimas? Porque até mesmo as antigas minisséries (quase sempre sobre fatos históricos do nosso país ou de Portugal) e as superséries mais recentes (explorando um Nordeste-Norte estigmatizados) seguem modelos de produção muito semelhantes, ainda que mais inventivas que as novelas. Diante dessa pergunta, conseguimos remeter também ao contexto internacional. As séries espanholas, marcadas pela mesma latinidade que nossas telenovelas, parecem reproduzir padrões quando é obtido sucesso de crítica e de público.
“La Casa de Papel”, “Vis a Vis” e “Las Chicas del Cable”, da gigante do streaming Netflix, são apenas alguns exemplos. O roteirista, produtor e diretor Álex Pina é responsável pelas duas primeiras, o que se reflete em estruturas de produção muito semelhantes, tais como cenários, iluminação e até número de temporadas (cinco temporadas executadas ou previstas nos três casos). Isso tem rendido às séries espanholas, que começam como fenômenos de aceitação e repercussão, críticas de que têm se alongado demais. Alguma semelhança com as novelas brasileiras?
Outra problemática que se repete diz respeito ao elenco, gerando até mesmo as já conhecidas fofocas do mundo artístico. Afirma-se, nos bastidores, que as atrizes Maggie Civantos e Najwa Nimri não possuem relação amigável porque a primeira teria abandonado as gravações de “Vis a Vis” (em que interpreta Macarena) para atuar em “Las Chicas del Cable” (como Ángeles). Najwa, por sua vez, também aparece em duas séries: como a Zulema de “Vis a Vis” e a inspetora Sierra de “La Casa de Papel”. A repetição de séries também ocorre com a atriz Alba Flores, Saray em “Vis a Vis” e Nairóbi em “La Casa de Papel”.
Diante desses casos, não questionamos, de forma alguma, a competência de tais artistas, cujas atuações costumam ser, de fato, quase impecáveis. O que pretendemos evidenciar é uma repetição no processo de produção, o que nos gera a pergunta: gostamos dessas estruturas porque têm qualidade ou essa qualidade passa a ser vista como tal por vermos muito mais do mesmo? Não seria o caso de abrir espaço para outras nuances? Mas, como já mencionamos, os espanhóis costumam ser tão passionais quanto nós brasileiros; assumindo paixões por determinados personagens, séries, padrões de narrativa…
As inovações, ao menos nos streamings, têm costumado vir de outros espaços: de sucesso não tão recorrente e sem estruturas tão padronizadas. Um exemplo disso é a série canadense “Anne with an E”, cujo cancelamento gerou comoção entre os fãs. A justificativa para isso foi justamente o processo de produção, considerado caro e complexo, em função de se tratar de uma produção de época. Fica, porém, um último questionamento: se a saga da adolescente Anne prosseguisse para além das suas três temporadas, sendo prolongada para atender a demanda dos seus apaixonados fãs, ela continuaria tendo a qualidade que a consagrou?
A coluna Observatório de Mídia é atualizada quinzenalmente às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #observatorionossaciencia. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
Leia o texto anterior: Quem disse que veganismo é caro?
JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí
Deixe um comentário