Os organismos que resistem a radiações ionizantes poderão ajudar na construção de sistemas biológicos sustentáveis em lugares fora da Terra?
No dia 26 de abril de 1986, um grupo de funcionários da Usina Nuclear de Chernobyl realizava um teste de segurança. Após uma sequência de erros operacionais, no entanto, foi disparada uma série de reações em cadeia no núcleo do reator que causou a liberação de uma quantidade brutal de energia e a sua explosão. Após a explosão, uma área de raio de 30 quilômetros ao redor do reator foi evacuada por contaminação e risco eminente à vida de seres humanos. A área permanece isolada até hoje. Mas nem tudo está morto por ali.
Ao longo dos anos, diversas espécies de fungos foram identificadas dentro desse raio de 30 quilômetros. Mas finalmente, entre os anos de 1997 e 1998 foram realizadas coletas de solo dentro do reator número 4 de Chernobyl, esse mesmo que explodiu. Pense num povo corajoso! Nestas amostras, estes pesquisadores conseguiram identificar a presença de algumas espécies de fungos que produzem uma parede celular com melanina, os fungos melanóticos. Estes fungos parecem não só serem resistentes à radiação como se beneficiam dela. Três características em seu comportamento indicam que o fungo se beneficia da radiação, eles migram em direção a fontes de radiação, eles crescem mais na presença de radiação e aumentam a expressão de genes envolvidos com uma alta atividade metabólica, como genes de produção de ribossomos. Mas como será que o fungo percebe a radiação e se beneficia dela?
Todos sabemos que a melanina nos protege da radiação UV. Quando nossa pele é exposta ao sol, a radiação UV induz os chamados dímeros de timina. Os dímeros de timina acontecem quando células que estão duplicando o seu DNA, ao invés de parearem suas timinas com adeninas nas novas fitas que estão nascendo, as pareiam com outra timina, uma mutação. O acúmulo de mutações é perigoso por poder gerar células da pele que se dividam descontroladamente, um câncer. Diversos organismos, incluindo nós, utilizam a melanina para absorver parte dessa radiação UV e assim diminuir a quantidade de erros na duplicação do DNA. Mas não é só a radiação UV que a melanina é capaz de absorver. A melanina de algumas espécies de fungos é também capaz de absorver doses letais de radiação gama. Somente o efeito protetor da melanina, possibilitando a sobrevivência de fungos em ambientes tão inóspitos, já poderia ser chamado de um superpoder.
Só que não acabou por aí, a melanina possibilita um fenômeno chamado de radiosíntese. Assim como plantas absorvem radiação luminosa e utilizam esta energia para sintetizar moléculas orgânicas, a absorção de radiação pela melanina pode ser convertida em energia química através da redução de NAD em NADH (que vai participar na cadeia de transporte de elétrons para a produção de ATP na mitocôndria). Não é fantástico? Além de absorver parte da radiação que seria letal ao organismo, a melanina possibilita que parte da energia da radiação seja convertida em energia química pelo fungo. Tá bem, talvez eu tenha exagerado ao chamar isso de radiossíntese, uma vez que, diferente da fotossíntese, não há a fixação de uma molécula química em uma molécula orgânica (como o CO2 é fixado na fotossíntese). Diferente de plantas, os fungos não dependem de radiação para crescer, eles só crescem mais.
Mas o mais incrível desta história ainda está por vir. Como bem disse meu amigo Luiz Mors Cabral: “O mais foda é que como radiação cósmica é a força mais abundante no espaço, esses fungos podem ser a solução para a alimentação de astronautas em viagens mais longas, como a ida a Marte, por exemplo”. Radiações ionizantes contém muitas ordens de grandeza de energia a mais do que a energia da luz branca. Assim, mesmo um processo ineficiente de transformação de energia ionizante em energia química deve ser considerado significativo nos cálculos para fluxos de energia em nossos ecossistemas e história do planeta. O Luiz ali em cima estava falando de uma série de experimentos que mostraram que alguns fungos da Antártica (que vivem em condições de alta incidência de radiação e pouca proteção atmosférica) sobrevivem em condições simuladas próximas ao ambiente marciano, com alta incidência de UV, e crescem mais na Estação Espacial Internacional do que na Terra. Assim, se estes organismos puderem ser cultivados de alguma maneira que consiga converter energia de radiações presentes no universo em energia orgânica, podemos pensar em construir sistemas biológicos sustentáveis em lugares fora da Terra.
Ficção científica a parte, a lição que fica é que a Terra é um planeta fantástico. Apesar de nossos esforços em destruir tudo o que está em cima dela, a vida por cá parece que vai durar mais do que nossos atraentes umbigos.
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Eduardo Sequerra
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