Não aproveitar as oportunidades também é um problema Coluna do Jucá

quinta-feira, 29 agosto 2019
O Rei Leão, filme de maior bilheteria dos estúdios Disney, poderia perfeitamente representar o colapso climático em curso. Fonte: Google

O Rei Leão, filme de maior bilheteria dos estúdios Disney, poderia perfeitamente representar o colapso climático em curso e, assim, reverberar o tema na mente de muitas pessoas que o assistissem

Lembro-me bem de quando assisti aos meus primeiros filmes no cinema, apesar de preferir fazer outras atividades. Para que fique claro: gosto mais de filmes e menos de ir vê-los na grande tela. Na primeira vez que fui a um cinema, a intenção era assistir ao filme “O Rei Leão”. Não este que foi lançado em 2019, mas aquele lançado na década de 1990. Impossibilitado de ver o filme por conta da falta de ingressos, acabei assistindo a outro filme: Os Flintstones. Apenas numa segunda tentativa consegui assistir à história do pequeno Simba. Talvez essa frustração inicial tenha ajudado a preservar esse registro na memória da infância.

Mesmo sendo desproporcional comparar as tecnologias de criação de animações e de projeção de imagens atuais com aquelas de quando a primeira versão do filme foi lançada – são duas décadas de diferença – a narrativa do filme inicial me emocionou muito mais. É claro que novas tecnologias audiovisuais ajudam a trazer mais realismo às películas, mas mesmo sem elas é possível admirar e se encantar com as belezas da savana africana, com toda aquela biodiversidade ou ainda com todo aquele sincronismo entre as mais diversas formas de vida.  A obra filmográfica trouxe para as telas do cinema um quadro aparentemente perfeito pintado pela Evolução Biológica e pela Seleção Natural. À época, a canção Hakuna Matata, a trilha sonora do filme, virou febre entre aquela geração.

A Eco-92, anterior à produção da primeira versão do filme, por exemplo, poderia ter sido utilizada como inspiração para traçar um paralelo entre os colapsos da savana e do clima. Fonte: Google

Um fato marcante traz mudanças importantes na narrativa do filme. Após a morte de Mufasa, o pai de Simba, todo o sincronismo da exuberante savana daquela região desapareceu. Deserto, ossos, terra batida e árvores desfolhadas viraram protagonistas de uma terra arrasada. Claro que não poderia faltar ele, o fogo: tão visceral, tão marcante, tão indesejado (no caso do Cerrado é outra história) e tão atual. O que restou de toda aquela região no filme? Um cenário quase Orwelliano, uma visão distópica de um ex-futuro indesejável que se fez presente. Um ambiente alimentado pelos sentimentos mais repulsivos e sombrios do autoritarismo de Scar e das hienas. Se é a arte que sempre dá um jeito de imitar a vida ou o contrário, não sabemos. Mas essas imagens fazem lembrar 1984, a brilhante obra de George Orwell que  permanece atual, mesmo sete décadas depois de publicada. Incrivelmente, o conteúdo da obra nos assusta de tão atual. Observando o presente, arriscaria dizer que não será fácil reescrever a história dos nossos tempos, quanto mais entendê-la.

Aquele momento do filme, nas duas versões, mostra o colapso da savana. E aí está uma oportunidade perdida, o ponto-chave deste texto que se baseia em ideia originalmente apontada por Greta Moran, em artigo publicado no The Guardian. De fato, a falta de oportunidades é um problema. Mas, o não aproveitamento delas também o é. A Eco-92, anterior à produção da primeira versão do filme, por exemplo, poderia ter sido utilizada como inspiração para traçar um paralelo entre os colapsos da savana e do clima. Poderia estabelecer uma relação entre a visão consumista (no estilo Black Friday) de Scar, e a visão protecionista e conservacionista de Mufasa.

Na sequência, veio o Acordo de Paris. A versão incrivelmente realista dos dias atuais perdeu mais uma vez uma ótima oportunidade de inserir uma discussão importante. Bastava uma frase, uma mensagem nas entrelinhas, mas nada disso esteve presente. O maior sucesso de bilheteria da Disney seria um espaço privilegiado, mas infelizmente não foi. Por exemplo, o último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) poderia adentrar e reverberar em um número muito maior de mentes. Poderia! Mas não o fez. Aprendemos muito pouco com o passado. Os ocorridos na Ilha de Gorée, na ilha de Robben, nas cidades de Hiroshima e de Nagasaki, em Auschwitz e em tantos outros locais mostram essas oportunidades de aprendizado perdidas.

O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) poderia adentrar e reverberar em um número muito maior de mentes. Fonte: Google

Não sei se a vida irá imitar a arte fazendo com que, ao final, revertamos o jogo, tal qual ocorre no filme. E falo isso para além do fogo que se alastra pelo nosso sumidouro de carbono, que beira a sua destruição. A resiliência da nossa floresta amazônica é incrivelmente admirável. Falo pelas pessoas cuja devoção e exaltação ao atraso não têm fim. Falo pela argumentação e pela defesa insana em prol do injustificável. Entre aqueles que assim agem e pensam, há um verdadeiro sentimento de empatia pela tragédia tupiniquim. O fogo, a fuligem e as cinzas os unem. Entre eles há um sentimento de pertencimento que constrói um nacionalismo às avessas.

Felizmente a ciência não tem nacionalidade. O DNA também não, mas as pessoas sim. Afinal, estamos longe de sermos apenas DNA (ainda bem também!). Este não é capaz de abrigar tanta mediocridade, tanta canalhice, tanto ódio, tanta indiferença. As pessoas enlouquecem, o DNA não. As pessoas emburrecem, o DNA não. Contudo, isto não quer dizer que este não carregue consigo informações “indesejáveis”, erros inatos, erros do tempo, erros ubíquos. Isto é, que estão por toda parte.

O progresso científico é, sem sombra de dúvidas, um condicionante do desenvolvimento econômico, social e cultural. Mas, não é também do desenvolvimento ambiental? Claro (óbvio!) que sim! Apesar da cegueira de muitos. A cegueira dessa “gente de bem” é tão intensa que desvirtua tudo o que está à frente dos seus olhos. Nada sai ileso, muito menos o avanço científico sobre o que está acontecendo e sobre o que pode estar por vir.

A pipoca, o refrigerante e o filme nos entreteu. Mas é difícil nesses dias cinza e tomados de fuligem, cantarolar a música Hakuna Matata (não se preocupe), conhecendo-se o seu significado.

Referência

Greta Moran. The Lion king missed an opportunity to talk about the climate crisis. 20 Aug 2019. The Guardian.

A Coluna do Jucá é atualizada às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe, curta. Use a hashtag #ColunadoJuca. Estamos no Facebook (nossaciencia), no Instagram (nossaciencia), no Twitter (nossaciencia).

Leia o texto anterior: Qual a importância que damos a ciência nacional?

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Site desenvolvido pela Interativa Digital