O retorno da coluna Diversidades Diversidades

segunda-feira, 19 agosto 2024

Após uma interrupção de quase dois anos, este espaço de debates interseccionais e decoloniais está de volta

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Com o retorno do Nossa Ciência após quase dois anos fora do ar volta também a coluna Diversidades, sob a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. No primeiro artigo desta nova edição, quatro integrantes da equipe de curadoria fazem uma retrospectiva do que representou para cada um(a) deles a experiência de gerenciar a coluna entre 2019 e 2022.

Um poderoso treinamento de escuta – Antonino Condorelli

Em minha primeira contribuição para a coluna Diversidades, em agosto de 2019, inverti a clássica pergunta de Spivak – “Pode o subalterno falar?” – e (me) questionei: pode aquele que subalterniza escutar? As e os subalternizados – aquelas e aqueles que os donos do conhecimento “universal” racializaram e reificaram transformando em “objetos” de estudo e portadores de “especificidades” ontológicas e epistêmicas, convertendo suas condições em “recortes” e obliterando a injustiça fundacional disso: o colonialismo – falam há muito tempo, apontam há décadas a imbricação de modernidade com genocídio, epistemicídio e escravidão, a indissociabilidade de capitalismo e racismo, o entrecruzamento e a inseparabilidade de opressões, os pressupostos euro-brancocêntricos do conhecimento considerado “legítimo”. Mas os donos da “plena humanidade” têm desenvolvido mecanismos cada vez mais sofisticados para abafar a potência dessas vozes. Um deles é se dizer “decoloniais”; transformar decolonialidade em rótulo, em (mais) um universal abstrato no qual “encaixar” fenômenos, pensamentos, corpos, perspectivas; convertê-la em (mais) um campo acadêmico, com seus donos e porta-vozes (muitas vezes brancos, com algumas exceções dentro da mesma lógica).

Durante um tempo, caí na armadilha de me considerar um “pensador decolonial”. Como não seria, pensava, se adoto abordagens teóricas e de método interseccionais e transdisciplinares, se quebro algumas hierarquias acadêmicas consolidadas na organização e o funcionamento do meu grupo e dos meus projetos de pesquisa, se convido pensadoras e pensadores de terreiro, quilombo, aldeia e periferia para protagonizarem encontros acadêmicos, se estudo e utilizo na construção de minhas pesquisas e reflexões pensamentos críticos negros africanos e diaspóricos, pensamentos indígenas e outras perspectivas que acadêmicos brancos costumam rotular de “decoloniais”? Nada disso, claro, tem mudado uma vírgula em como funciona o espaço acadêmico onde atuo. Só tem servido para que meus pares (a maioria brancos) me reconhecessem como um legítimo “representante” do tal “pensamento decolonial”. É compreensível que tenha caído nessa arapuca: sou branco, europeu e acadêmico.

Antonino Condorelli, professor do Departamento de Comunicação Social da UFRN e coordenador do grupo de pesquisa DESCOM. (Foto: Arquivo pessoal)

A primeira experiência compartilhada de curadoria desta coluna contribuiu para que me desvencilhasse ao menos parcialmente da armadinha. Como almejava quando escrevi meu artigo de estreia, há exatos cinco anos, foi um poderoso treinamento de escuta. Ao longo do caminho, não ganhei só mais humildade epistemológica. Acima de tudo, pude sentir que decolonialidade não é modinha intelectual nem nicho de mercado para editoras e perfis de redes sociais. Pude sentir que subverter certas hierarquias em alguns espaços legitimados previamente pela minha branquitude e convidar pontualmente produtoras e produtores de saberes não-científicos para serem ouvidos e não objetificados por acadêmicos não me torna “decolonial”, nem na academia nem em meu dia a dia. Vi e senti que há mulheres negras, mulheres indígenas, comunicadoras populares, mulheres periféricas, pessoas queer do Sul Global e um longo et cetera que tensionam os pressupostos da modernidade euro-brancocentrada e constroem alternativas emancipatórias todo dia, de forma indissociável de suas vidas e de suas lutas e sem necessidade de rótulos, nem de validação de acadêmicas e acadêmicos “decoloniais”. A maior aprendizagem foi que tenho muito a aprender (e nada a ensinar) dos pensamentos e das práticas de quem abala todo dia – se propondo a isso conscientemente ou não – o conhecimento universalizante, logocêntrico e extrativista que sustenta o capitalismo e a supremacia branca.

O medo se tornou menos importante – Alice Andrade

A escritora Audre Lorde tem uma frase que diz: “quando me atrevo a ser poderosa e a usar minha força a serviço da minha visão, o medo que sinto se torna cada vez menos importante”. Penso nela quando reflito sobre a experiência com a coluna Diversidades. Entre 2019 e 2022, esse espaço foi um verdadeiro divisor de águas na minha jornada pessoal e profissional. A cada texto escrito, eu me via desafiada a enfrentar minhas próprias vulnerabilidades, abraçando a responsabilidade de tratar de questões sensíveis e frequentemente silenciadas. O processo de pesquisa, escrita e reflexão sobre temas voltados para comunicação, mídia, direitos humanos e questões étnico-raciais ampliou meu entendimento sobre a complexidade do mundo, mas também fortaleceu minha confiança enquanto mulher negra que escreve. Com o tempo, o que antes parecia intimidante e carregado de receios se tornou uma fonte de empoderamento e expressão, um lugar seguro para que pudesse falar e ser lida.

Alice Andrade, jornalista, doutora em Estudos da Mídia, professora substituta do Departamento de Comunicação Social da UFRN e membro dos grupos de pesquisa DESCOM e VISU – Laboratório de Práticas e Poéticas Visuais. (Foto: Arquivo pessoal)

Além disso, o retorno do público do portal Nossa Ciência e a interação com leitores que se sentiram tocados ou inspirados pelos textos contribuíram enormemente para o meu crescimento. Ver como minhas palavras poderiam impactar e gerar diálogos significativos foi um lembrete constante de que a verdadeira força vem das trocas que temos com os(as) outros(as) e com o mundo. Assim, o receio inicial foi substituído por uma sensação de coragem e vontade. A coluna Diversidades me ensinou que, ao usar a minha voz para contribuir com a discussão sobre a diversidade, eu não apenas superava meus próprios medos, mas também ajudava a abrir caminhos – abertos para mim por outras mulheres negras – para um diálogo mais enriquecedor e respeitoso na sociedade.

A experiência na coluna Diversidades foi, portanto, fundamental para o meu crescimento pessoal e profissional. Pude ler e aprender com colegas que tanto admiro e me fortalecer a partir de suas reflexões. Proporcionou-me, ainda, um espaço para explorar e expressar minhas ideias, fortalecer meu posicionamento político e acadêmico e aprimorar minhas habilidades de comunicação e ensino. O impacto dessa vivência continua a ressoar em minha prática docente e em meu engajamento com questões de justiça social e direitos humanos. Depois de todo esse tempo, como disse Audre Lorde, o medo se tornou menos importante. Que bom que estamos de volta.

Sobre uma ciência solidária – Sarah Fontenelle Santos

Quando cheguei a Natal, em 2019, para estudar doutorado em Estudos da Mídia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, fui recepcionada pela amiga Andrielle Mendes que disse: “a ciência não precisa ser solitária, pode ser solidária”. Com essa frase ela ganhou meu coração freireano. A solidariedade, sobretudo das mulheres, me salvou na academia. Logo estaríamos no grupo de estudos DesCom – Descolonizando a Comunicação, co-criando um pensamento para dessubalternizar a comunicação e a ciência. Fui salva de novo. Nos encontrávamos para debater textos que iam de Lélia Gonzalez e Abdias Nascimento a Achille Mbembe entre estudantes de graduação, professores e estudantes de pós-graduação que, em circularidade, fluíamos em saberes contra o colonial capitalismo.

Sarah F. Santos, piauiense das águas do Parnaíba, jornalista independente do OcorreDiário, comunicadora popular, doutora em Estudos da Mídia. (Foto: Arquivo pessoal)

Então recebemos o desafio de escrevermos para a coluna Diversidades. O desafio de fazer nossas ideias circularem para além do círculo de debate. Como a ciência ali é solidária, nos apoiamos uns aos outros e o encaramos. Para mim, significou um compromisso com a elaboração de um pensamento engajado que põe as práticas como produtoras de saberes e de epistemologias. A coluna se tornou um espaço para confluenciar pensamentos livres, autônomos e que não negam a subjetividade. Lembro da amiga e professora Maria Sueli Rodrigues, já uma ancestral, defendendo que a ciência se tornasse cada vez mais subjetiva. “Somos subjetividade”, dizia em seu espírito revolucionário. Mulher caatingueira, Su sempre lembrava que enquanto não fôssemos desobedientes à lógica da modernidade/colonialidade, estaríamos presos à filosofia da consciência, esse nó colonial que nos faz sujeito produtor que serve ao desenvolvimento, mas jamais um sujeito envolvido com sua própria essência. Se envolver na ciência é solidariedade para romper com o pacto narcísico da universidade, que nos oprime e nos reduz a seres produtores.

Na coluna Diversidade tive a oportunidade de compartilhar alguns pensamentos/práticas de desobediência e lançar contra-feitiços anticoloniais desde as transfluências e confluências com a comunidade, sobretudo a Comunidade Boa Esperança de Teresina (Piauí) e a plataforma de comunicação popular e colaborativa OcorreDiario. Pude falar um pouco do sonhAção de uma comunicação insurgente, contracolonial e do Bem Viver. Também refleti sobre a necessidade de uma comunicação mobilizadora e horizontal e sobre um jornalismo mágico latino americano, ente outros temas. Aprendi com meus e minhas colegas sobre uma comunicação antirracistas, antimachista e antihomofóbica, sobre saberes ancestrais de extrema urgência para atravessar a atual crise civilizatória e promover a “reedição da vida”, como dizia Nêgo Bispo.

Que possamos seguir salvando a academia dela mesma. Se houver solução, ela será solidária ou não será.

Salvaguarda da ciência – Joana Mercedes Paino

Conheci a coluna Diversidades em um evento do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Participavam daquele evento a pesquisadora Alice Andrade, hoje doutora em Estudos da Mídia, e outros integrantes do então DesCom – Descolonizando a Comunicação, um grupo de estudo e discussões – hoje grupo de pesquisa com o nome Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades – sobre problemáticas contemporâneas, tanto no campo da comunicação quanto das ciências humanas e sociais em geral, com abordagens teóricas e metodológicas interseccionais e transdisciplinares.

Fiquei encantada com as falas da professora Alice e dos demais, que me permitiram perceber a importância dos diálogos  que aquele grupo promovia sobre temas fundamentais do nosso tempo como a relação entre racismo e capitalismo, a colonialidade das normatividades de gênero e sexuais, a subalternização de saberes de grupos marginalizados e outas questões, congregando ideias de autoras e autores que eu admiro, como a filósofa Djamila Ribeiro e o filósofo Silvio Almeida.

Joana Mercedes Paino, advogada e jornalista. (Foto: Arquivo pessoal)

Logo quis me agregar ao grupo e entrei em contato com seu coordenador, o professor Antonino Condorelli, que em pronto permitiu a minha participação. Comecei a atuar no DesCom no final de 2019 e em 2020 o professor Condorelli perguntou se eu gostaria de fazer parte da euipe de curadoria da coluna. A princípio fiquei muito honrada, mas um pouco temerosa, por ser na época graduanda do curso de Jornalismo e ver escrevendo naquele espaço pesquisadoras e pesquisadores com muita competência e conhecimentos. Mas percebi que estar ali como estudante de graduação, realizando pesquisas e escrevendo, representaria mais uma quebra da hierarquias acadêmicas e epistêmicas, em sintonia com o espírito do DesCom. Assim, entrei na coluna e comecei a aperfeiçoar a escrita, atrelando-a às pesquisas realizadas.

Penso que a principal dificuldade foi a pandemia de Covid-19, um acontecimento traumático que nos obrigou a criar novas formas de interação com o mundo, pois afetou diretamente a maneira como nos reuníamos e dialogávamos. Começamos a desenvolver pesquisas atreladas às problemáticas daquele período, com ênfase na intensificação de desigualdades históricas pelo governo da época, a violação das necessidades básicas dos grupos subalternizados, a negação das garantias individuais e coletivas e a da nossa própria existência e resistência. A coluna Diversidades me salvou, de certo modo, das piores reverberações do período pandêmico, servindo como respiro. Foi um espaço de partilha de indignações e reflexões, de nossas tristezas e sentimentos frente a um governo genocida que cometeu atrocidades em todas as esferas da humanidade.

Sob a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

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