Marilene Oliveira conta os percursos como mulher advogada através da coragem, do amor e do luto. A missão parece ser uma só: defender os que mais precisam
Por Marilene Oliveira
Hoje, 04 de dezembro, curiosamente, fui compelida a falar um pouco da minha trajetória. Hoje é dia de Iansã, Orixá que sempre apareceu na minha história de vida. Essa guerreira deve ter me dado algo dela, pois é uma lança por dia na luta por direitos… Há mais de 20 anos, iniciei meus estudos em Direito. Não era o tipo de estudante que usava tailleur, ao contrário: camisas de banda, jeans e muita roupa indiana, além dos cabelos soltos, vermelhos e cacheados… cheia de sangue nos olhos.
Poderiam pensar que eu estava dormindo, mas eu estava lá ouvindo e questionando tudo. Quando o professor de Economia Política ouviu minha crítica à Igreja Católica ele disse: “mas, a Igreja Católica melhorou muito!”. Tive que responder: “verdade! Não matam mais mulheres queimando-as em praça pública!”. Entretanto, como sempre, ainda estamos morrendo de morte matada, de violências várias, desde as simbólicas (Bordieu) até aquelas mais brutais.
Quando penso que aquela jovem estudante estava sempre perguntando os porquês de tamanha desigualdade, vejo que ela questionava isso desde que “aprendeu” a pensar. E, assim, concluí a graduação em Direito, desistindo de ser advogada e me tornando professora de Direito. Alguns anos depois, fui “intimada” a ser advogada. Passei de primeira na prova da OAB, ainda no Rio de Janeiro/RJ. Ainda assim, a advocacia não estava despertada em mim.
Como professora, não vivia a prática da advocacia, não conhecia os impactos do “Direito” na vida das pessoas. Só conhecia aquele dos livros, da doutrina. No final de 2015, comecei a fazer contato com textos das Ciências Sociais e, mais tarde, de Antropologia Jurídica. Textos que me intrigaram por sua realidade. Já em Natal/RN, em 2016, ofereci meus serviços jurídicos como voluntária na pastoral carcerária da cidade, a fim de pesquisar a travesti no cárcere.
Em janeiro de 2017, houve o massacre de Alcaçuz, que penso como o maior massacre nas prisões do Brasil, estive pela pastoral carcerária junto a centenas de mulheres de presos, desesperadas por notícias de seus companheiros encarcerados. Ali nasceu a “Dra. Mari”, de cabelos rosados espantada com tamanha desumanidade no sistema prisional do RN. Nessas horas, Iansã aparece com suas lanças!
Meu trabalho inicia com a tentativa de amenizar a angústia e o desprezo experimentado por aquelas mulheres sacrificadas pelo sistema e pela certeza de que mulher, filha, mãe de “bandido” é bandida também. Nos primeiros dias do massacre, ouvíamos gritos suplicando por água para beber. A cada pessoa presa que eu visitava, era uma dor, uma notícia de tortura, falta de água pra beber, pra se banhar, pra limpar a cela. A brutal desumanidade nunca teve sequer a intenção de “combater o crime”. É mais um castigo para os que estão na senzala, sim! O Brasil precisa de uma “nova” libertação dos escravos, já que o cárcere substitui a senzala (Florestan Fernandes). Os capitães do mato permanecem com seu trabalho sórdido, subjugando os acorrentados e maltratando aquelas que “tiram a cadeia” de seus homens. Inclusive, pela revista íntima, que é tão humilhante e deprimente, mas, ainda praticada nos presídios do RN em pleno Século XXI. As normas decidem até a cor da calcinha que as mulheres usam… e, com a finalidade de garantir a Segurança Pública!
Realmente… não temos morrido queimadas em praças públicas… a despeito disso, diariamente, levam um pedaço de nós. Nos dilaceram por diversos meios. Nos torturam com palavras e chicotes. Advogada de “bandido”, também é vista como bandido.
Hoje, essa advogada filha de Iansã, não cansa de atirar suas lanças na defesa dos que precisam. Mais um equívoco comum que sofremos: a advocacia criminal não se ocupa de defender o crime ou o criminoso. Ela defende direito das pessoas que respondem por seus crimes.
E, tentamos amenizar a dor daquelas que, apesar de não estarem encarceradas, sofrem junto aos presos, suas penas. Explicando, conversando, dando esperanças. Pois, também já perdi noites de sono pelos acorrentados e atirados à pior sorte: até comer uma refeição bem preparada tira o sono… imaginando que eles não conseguem o mínimo.
Marilene Oliveira é advogada, voluntária na pastoral carcerária de Natal e professora. Graduada e Mestre em Direito pela Universidade de Nova Iguaçu (UNIG), atua na advocacia particular e militante de direitos humanos no estado do Rio Grande do Norte.
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Leia a coluna anterior: E se eu não quiser ser a mocinha?
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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