Legado de Mujica e Papa Francisco: amor, resistência e justiça social
(Helinando Oliveira)
Um profundo vazio preencheu os últimos dias de toda a humanidade e, em especial, do povo da América do Sul. Partiram duas celebridades que tinham muito em comum, para além das grandes lideranças que representavam. Notem que estamos falando de um papa e de um ateu que foram ilustres representantes do amor pelas pessoas e pela vida.
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Por mais conflitante que possa parecer colocar o chefe da Igreja Católica ao lado de um ateu, este é um caso icônico que demonstra que a religiosidade não significa nada quando se pratica aquilo que é a essência do cristianismo: “Amar o próximo como a ti mesmo.”
No entanto, praticar o amor é transgredir regras que protegem os poderosos. Jesus foi crucificado como um preso político; Mujica passou 15 longos anos na prisão; e o papa lutou contra a resistência dos ditos seguidores de Cristo, que entendem que a missa de domingo é suficiente. Mujica e o papa compreendiam que os donos do poder se apossaram dos tesouros na Terra e fizeram o resto do povo acreditar que seu tesouro estava no céu — e que a vida deveria ser feita para sofrer e trabalhar.
Em homenagem a nossos ilustres pensadores, trago recortes de seus pensamentos para entendermos a conexão entre eles.
Mujica:
“Como inventamos uma sociedade de consumo, consumista, e a economia tem que crescer porque, se não crescer, é uma tragédia, inventamos uma montanha de consumo supérfluo. E tem que viver comprando e jogando fora, e o que estamos gastando é tempo de vida, porque, quando eu compro algo — ou você —, você não compra com dinheiro; você compra com o tempo de vida que teve que gastar para ter esse dinheiro. Mas com uma diferença: a única coisa que você não pode comprar é a vida. A vida se gasta. E é miserável desperdiçar a vida para perder a liberdade.”
Nesse ponto, Mujica ataca o consumismo que mantém um abismo social colossal entre o Norte e o Sul global, nos papéis tradicionais de colonizadores e fornecedores de matéria-prima. Não é à toa que Mujica foi considerado o presidente mais pobre do mundo, por fazer valer práticas que confrontavam o poder econômico dominante.
Caminhando ideologicamente de mãos dadas com Mujica esteve o papa Francisco. Ele afirmou:
“Enquanto não se resolverem radicalmente os problemas dos pobres, renunciando à autonomia absoluta dos mercados e da especulação financeira, e atacando as causas estruturais da iniquidade, não se resolverão os problemas do mundo e, em última análise, problema algum. A iniquidade é a raiz dos males sociais.”
“Mas não se pode subtrair a centralidade dos pobres no Evangelho. E isto não é comunismo, é puro Evangelho! Não é o Papa, mas Jesus, que os coloca no centro, nesse lugar. É uma questão da nossa fé e não pode ser negociada. Se não aceitardes isto, não sois cristãos!”
Por essas falas, fica claro o vazio que será deixado por Pepe Mujica e pelo papa Francisco. No entanto, restam-nos o padre Júlio Lancellotti e sua luta hercúlea contra a aporofobia, e o magnífico Noam Chomsky, que segue como o maior pensador do nosso tempo. Restam também todos aqueles que defendem a natureza, o planeta e o povo. E, nessa luta, precisamos estar preparados para perder. Como afirmou o padre Júlio:
“A minha perspectiva é o fracasso. Porque, se nesse sistema eu não fracassar, é porque eu aderi a ele.”
Embora impactante, essa mesma constatação já fora estabelecida por Mujica, como a seguir:
“É tão impressionante como a nossa natureza é feita que você acaba aprendendo muito mais com a dor do que com a prosperidade. Isso não significa que eu esteja recomendando o caminho da dor, nem nada do tipo. Significa que quero transmitir às pessoas que você pode cair e se levantar, e que sempre vale a pena recomeçar, mil vezes, enquanto você estiver vivo. Essa é a maior mensagem da vida, que pode ser resumida assim: derrotados são aqueles que param de lutar. E parar de lutar é parar de sonhar.”
Obrigado, Francisco.
Obrigado, Mujica.
Seguiremos!
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Helinando Oliveira é físico, professor titular da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e atualmente é vice presidente da Academia Pernambucana de Ciência
A coluna Ciência Nordestina é atualizada às terças-feiras
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