Evitar a terceirização mental é praticar insubmissão cognitiva contínua: é preciso pensar antes de automatizar
(Gláucio Brandão)
Em coluna anterior, com base na Unconscious Thought Theory (UTT), defendi que pensar dentro da caixa — ativando o inconsciente — é a melhor rota para resolver problemas complexos. Sim, dentro. Afinal, Freud estava certo de novo: o inconsciente é mais eficiente do que o consciente quando o jogo é pesado.
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Sete meses se passaram. Durante esse tempo, mergulhei fundo no uso das GenAIs que circulam pelo mercado digital — ChatGPT, Copilot, Gemini e outras que esqueci o nome —, aplicando em todas os métodos possíveis, sem nunca ter ousado levar qualquer uma delas para passear em sala de aula. Chega o dia 18 de março de 2025; primeiro dia de aula. Alunos lentos para usar uma ferramenta que eu mesmo criei. Perdi a paciência e disparei: “Essa IA faz isso melhor que vocês. Querem ver?”. Subi o prompt, executei via IA. O que aconteceu? Ela fez. Melhor que eu. E com a minha própria criação.
Sim, a criatura superou o criador — com precisão, elegância e sem errar uma vírgula. Olhei para o telão tentando disfarçar o susto. Mas o impacto me atingiu de cheio: Será que ela já é mais inteligente do que nós? Digo… do que eu? Surgiu uma hipótese!
Segundo a UTT, o inconsciente humano é superior ao consciente para lidar com problemas complexos. Enquanto o consciente é analítico, limitado e sequencial, o inconsciente é associativo, paralelo, multitarefa. Ou seja: pensar menos pode ser pensar melhor.
Subconsciente × Inconsciente
Subconsciente: executor automático. Armazena padrões, hábitos, vícios. Reage, mas não cria.
Inconsciente: origem da criatividade. Caótico, imprevisível, criador. Produz saltos, abduções, insights fora da curva.
Inconsciente Coletivo
Jung nos lembra: há uma camada mental partilhada por toda a humanidade. Arquétipos, imagens universais, mitos. Um sistema simbólico basal herdado — que opera mesmo sem experiência individual direta.
Uma hipótese é uma proposição provisória, criada para explicar algo, resolver um problema ou prever comportamentos. Tem início, geralmente, em perguntas. Considerando a UTT, os inconscientes (pessoal e coletivo) e comparando-os às GenAI, me veio a questão central:
Será que o contínuo digitalizar aleatório do conhecimento humano e sua exposição a infindáveis algoritmos – por não termos padrões éticos para escrita deles – está criando um gigantesco inconsciente digital?
Observe que esse bicho aí não segue regras, tem processamento rápido e paralelo, muitos recursos sendo integrados e operados ao mesmo tempo, divergência total (muita gente diferente alimentando com todo tipo de coisa, positiva, neutra e negativa) e, por incrível que pareçam, ambos inconscientes coletivos (natural e digital) alucinam! Se esta hipótese tiver a mínima coerência, surge um alívio reconfortante sobre minha capacidade cognitiva, pois abre-se um leque para as subperguntas:
Se tudo isso puder ser coerentemente respondido com um sim, a questão deixa de ser “quem é mais inteligente, a IA ou a IH (inteligência humana)?”, e passa para “quando a IA tornar-se-á consciente?”. No meu pouco saber psicológico, vejo a consciência como um elemento ativo. Os outros dois entes, o subconsciente e o inconsciente, puramente reativos. Ou seja, ainda estaremos à frente das máquinas por um bom tempo. Neste aspecto, a IA, com toda certeza, vai nos superar em inteligência reativa, mas talvez nunca em inteligência ativa.
Na verdade, estamos, sem querer, criando um gigante digital e confuso. Um sistema emergente, não planejado, que:
Sendo assim, surge um novo questionamento: se o inconsciente digital, de tão parecido, puder substituir o nosso, estaremos diante da possibilidade de “terceirizar” nossa mente inconsciente para aumentar a produtividade, ou transformaremos a sociedade em uma verdadeira “Zumbilândia”? Considerando o número crescente de pessoas imersas em telas, esse cenário talvez não esteja tão distante.
O gigantesco inconsciente digital é composto de uma massa invisível de dados que entregamos sem perceber — rastros, vícios, padrões, bondade, fúria, ruídos —, que alimentam algoritmos capazes de moldar decisões humanas, construir futuros sem intenção consciente e transformar nosso lixo mental em comando operacional das máquinas. Evitar a terceirização mental é praticar insubmissão cognitiva contínua: cultivar intenção própria, pensar antes de automatizar, produzir antes de consultar a IA, impor exercícios mentais para nós mesmos contra a facilidade do uso. Mas não nos enganemos: romper com toda essa aparente comodidade que estamos recebendo vai doer.
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Gláucio Brandão é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e autor do livro Triztorming
A coluna Disruptiva é atualizada às quintas-feiras
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