A jornalista Sarah Fontenelle fala sobre a Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa: OcorreDiário
Por Sarah Fontenelle Santos
Quero aproveitar o espaço da coluna esta semana, para comunicar sobre a diversidade que é fazer comunicação popular e coletiva em tempos de rupturas. E partirei da experiência da Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa, OcorreDiário (O corre Diário, Ocorre Diário ou como queiram, a liberdade está na mesa, aliás). Pois bem, essa iniciativa tem pouco mais de dois anos e nasceu das mentes e corações de jovens comunicadores, no Piauí, que ousaram sonhar/fazer uma outra comunicação possível. Porém, sua história são andarilhagens de sonhos de muito antes, ainda quando lutávamos pela democratização da comunicação na Enecos (Executiva Nacional do Estudantes de Comunicação Social).
Apesar de nunca termos nos separado, encontrando-nos sempre em muitas lutas coletivas, nos reencontramos no desejo de fazermos uma luta que nos conectasse ao que-fazer comunicativo (qual é a tarefa d@s comunicador@s na construção de um mundo novo?). Foi quando criamos a Flores.Ser Comunicação Coletiva, em 2016. Por lá, prestamos assessoria aos de arte, cultura e outros movimentos sociais, mas também desenvolvemos projetos de comunicação popular como Mulheres nos Terreiros da Esperança (junto a comunitários ameaçados de remoção pelo Programa Lagoas do Norte[1], onde nos juntamos à pergunta “Lagoas do Norte Pra quem?”).
Foi a partir desta movimentação que nos juntamos a outros e outras corpas sedentas por restaurar o direito de dizer a nossa palavra. E então, nos sentíamos mais completos na construção deste horizonte-utopia, que se distancia sempre quando damos dois passos. A utopia como esse horizonte que sempre nos põe a caminhar.
É assim que, hoje, estamos entre jornalistas, fotógrafos, comunitários, arquitetos, artistas e colaboradores tantos, cartografando os afetos de quem tá no corre diário dessa vida. Feita esta explanação, convoco vocês, então, a mergulhar em uma comunicAção. Digo ação, porque não nos sujeitamos ao imobilismo que o jornalismo nos impõe com suas factualidades, objetivismos e distanciamentos.
É ComunicAção, pois participa e reelabora outros conviveres possíveis. Também denominamos como uma comunicação que necessita agir nas urgências da liberdade, pois este é o projeto popular, ao qual nos enredamos: a emancipação. E nos dizeres de Paulo Freire, a palavra, que só acontece em comunicação, que por sua vez só acontece em dialogia é possibilidade de estar no mundo.
Nos desafiamos a um jornalismo-experiência. Por experiência, dialogamos com Bondía “A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que passa, o que acontece, ou que toca” (LAROSSA, 2002, p. 21). A experiência é acontecimento profundo em mim. Quer dizer, me tocou, passou em mim. Não passou por mim, mas em mim. Me aconteceu, me atravessou.
Trazendo para roda, Ailton Krenak, e nos inspirando na resistência indígena, poderíamos dizer que se trata de um jornalismo que resiste com a subjetividade. “É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir” (KRENAK, 2019, p. 26). Então, fazer este tipo de jornalismo-experiência é não deixar que escapem nossas subjetividades e nem deixar que elas sejam alimento na mesa do mercado capitalista. É, também, pela defesa de que vivam muitas subjetividades em diferentes Bem Viveres.
É assim também que nos inspiramos no, mais que teórico da comunicação, o mestre e griô, Muniz Sodré (2006), e seu modo de tecer comunicação como estratégias sensíveis. Para nós, que estamos nesse corre, senti-pensamos desde estratégias sensíveis, que sendo orgânicas nascem de intuições coletivas, das espontaneidades do sentir e da sistematização do Sonhar-Fazer. Outras palavras são a tentativa de reconstrução de uma comunicação que seja (re) encantadora de muitos mundos , pautada em outras lógicas, que sejam as lógicas de nossas raízes latino-americanas.
Poderia citar seis desafios que nos são muito caros, que não estão elencadas por ordem de importância, pois seria complexo alcançar tal intenção. A primeira lógica a ser desafiada é a do aprisionamento do tempo presente, esse tempo de ausências que nos distancia da circularidade da Terra, pautada na simultaneidade e instantaneidade nais is o jornalismo se encontra hoje, preso ao conceito de periodicidade. Portanto, nos desafiamos a pôr no lugar as nossas temporalidades latino-americanas, as temporalidades orgânicas de um presente não fugaz, mas como o nome diz “presente”, que encontra raízes e se conecta aos que-fazeres do nosso povo.
Em segundo lugar, nos desafiamos a fazer rebuliço da linguagem, pois o modo de dizer a nossa palavra tem que ter a nossa estética. Buscamos, em Cremilda Medina (2003), a nossa inspiração, pois partimos da poética da interpretação e da inteligência sensível, Pensar-Analisar-Agir. Por isso, é JornArtista, é cultural, é literária, reencantadora, cósmica, transcendental. Assim que podemos trabalhar muitas vozes, que se expressam de muitos jeitos, desde vários locais de fala. O formato é não ter formato padrão, mas sim vários formatos possíveis.
Um terceiro desafio, seria a escuta. Temos a escuta sensível como elemento suleador da linguagem, ouvindo mais que falando, nos perguntamos antes o que cada pessoa pretende dizer e como pretende fazer. Isso, por si só, muda o modo de dizer as coisas. Por isso, é preciso ter a escuta como a principal pilastra para uma metodologia participativa. Esta metodologia deve agir como reparadora de anos de opressões dos sujeitos que tiveram negado o direito de dizer a sua palavra. Por isso, nossa ação aqui é de construir narrativas conectadas às nossas memórias profundas. Como disse Krenak, é preciso memória para não sucumbir à loucura.
Assim, concordamos com Catherine Walsh: “la memoria colectiva lleva los recuerdos de las y los ancestrxs —andrógenos, hombres y mujeres, líderes, lideresas, sabios, sabias, guías— que con sus enseñanzas, palabras y acciones, dieron rumbo al menester pedagógico de existencia digna, complementaria y relacional de seres —vivos y muertos, humanos y otros— con y como parte de la Madre Tierra” (WALSH, . 26)
Nosso quarto desafio está dentro do nosso fazer coletivo. Enquanto comunicadores que agem diante do mundo, talvez esse fazer seja o de deslocalizar o lugar da fonte. Partindo do princípio de uma comunicação coletiva, colaborativa e participativa, convidamos a traduzir o mundo com muitas mãos, muitas mentes e muitas linguagens.
Assim, se antes o companheiro antropólogo, Lucas Pereira, por exemplo, seria uma fonte, ele pode trocar de lugar para restaurar esse lugar de falar, fazendo sua própria narrativa. É verdade, também, que quando a Lúcia Oliveira, liderança comunitária, se põe a entrevistar seus vizinhos para construir uma narrativa coletiva, ela está relocalizando o lugar da fonte (aliás, gostaria de destacar a importância das experimentações desta companheira na construção das reportagens coletivas, mas também na elaboração das pautas e direcionamentos delas).
Assim também é possível que comunitários ou pessoas que teriam a sua palavra no lugar convencional das aspas, passa a construir sua memória e sua história de modo colaborativo. Isso ficou mais evidente, no momento que recebemos o depoimento da mãe que teve seu filho executado (na rodoviária de Teresina em março deste ano) e não vimos condições de recortar uma única fala sua, sob o prejuízo de lhe esvaziar sentidos. Assim, criamos a condição de um texto de narrativa observamos que isso era recorrente, quando fazíamos apenas a introdução de várias notas-denúncias que nos chegavam dos movimentos sociais, bem como em outras ocasiões.
Em quinto lugar, o desafio de mediatizar o mundo e suas diversidades. Ao contrário da imparcialidade e neutralidade proposta pela comunicação e jornalismo tradicional, nós temos lado, e assumimos o lado dos sujeitos e sujeitas que foram historicamente subalternizados, mas que “vão falar e numa boa” (parafraseando Lélia Gonzalez). Buscamos antes a pluralidade, no lugar da neutralidade e da imparcialidade.
Um sexto desafio são as tecnologias. Compreendemos que não podemos e nem devemos deixar de dizer a nossa palavra pela ausência de certas tecnologias, pela ausência de “estéticas apropriadas”. Pelo contrário, refazemos os caminhos tecnológicos com estéticas próprias. Não temos medo da estética do feio (para citar uma expressão utilizada por Vicente Nascimento, pesquisador e companheiro de corre diário). Também, não temos medo de nos apropriar das técnicas e tecnologias que estão ao nosso alcance, mesmo que pareçamos estar em outro tempo. Talvez nossa estética tenha a lentidão da temporalidade latina-americana, onde certas tecnologias teimam em tardar (pelas desiguais coloniais que nos assolam), mas nunca deixamos de andarilhar nas trilhas da criatividade.
A comunicação que anuncia o adiamento do fim do mundo só pode ser feita na experimentação, nas falhas e nos refazimentos, ou seja, atua nas incompletudes, no inacabado: não está tudo dado, mas entende que há muito o que fazer. Experimenta formatos, incertezas, formas, cruza conhecimentos, elabora-se na fronteira.
Destacamos a comunicação popular feita realizada em todo o Sul Global como uma comunicação-ato-de-coragem, pois ensaia outro mundo, restaura a possibilidade de dizer a palavra de muitos. Essa ação contra-colonizadora, visa democratizar a comunicação para alcançá-la como direito humano. Mas seus objetivos não se findam aí.
Sendo uma comunicação calcada no que Paulo Freire chama de ação cultural para a liberdade, compreende que sua tarefa é também provocar rupturas no ordenamento capitalista. Esta é condição inadiável e inegociável para que possamos restaurar o direito de dizer nossa palavra. Portanto, está no que-fazer do comunicador e comunicadora popular derrubar as matrizes que sustentam a lógica do desenvolvimento (destrói existências em nome do progresso) e sua matriz colonial.
E porque queremos resgatar outras cosmovisões e epistemologias para comunicarmos o mundo, é que não podemos deixar de lado a perspectiva contra-colonizadora, esta que age permanentemente nas encruzilhadas do sonhar-fazer. A utopia que nos move é caminhar coletivamente em harmonia com muitas diversidades, experimentando, se refazendo e (re) existindo. Não custa nada repetir que esse que-fazer envolve o anticapitalismo (e a quebra de suas opressões de classe), antiracismo, antimachista e antihomofóbica (Salve as lutas LGBTQI+).
Para finalizar gostaria de poder evocar os nomes que tem tido a coragem de andarilhar nesse corre diário. Já que coletividades têm nomes e palavras escritas tem força, que esses nomes sejam multiplicados para a construção destas tarefas em toda a nossa Abya Yala: Luan Matheus, Isabel Jardim, Lúcia Oliveira, Ronald Moura, Mallu Mendes (a Pantera), Carmen Kemoly, Valmir Macêdo, Vicente Leite, Kelson Fontinele, Luan Rusvell, Thays Guimarães, Ludmila Nascimento (Lud Nascy), Fleibert (O Cacau), Joceilson Costa (Jovem e potente Pai de Santo), Karla Luz, Lucas Pereira, Natanael Alencar, Gustavo Leite, Eli Pacheco. E tantos outros nomes que tão no corre diário conosco e aqueles que nem conhecemos, mas que sabemos que somam na construção de outra comunicação e outro mundo possível.
*Sarah Fontenelle Santos é jornalista, co-idealizadora do OcorreDiário Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Edição colaborativa e solidária de Luan Matheus e Isabel Jardim, co-idealizador@s do OcorreDiário.
[1] O Programa Lagoas do Norte é um programa dito de urbanização e de qualificação urbana, que na verdade tem desterritorializado comunidades tradicionais da Zona Norte de Teresina (capital do Piauí). O programa tem agido de forma a desapropriar famílias, violando o direito à cidade e à moradia.
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Leia a coluna anterior: Pioneirismo feminino no cinema: pretas e latinas
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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