Neuromancer, agentes de IA e o futuro da interoperabilidade tecnológica
(Gláucio Brandão)
Observem o diálogo que se segue:
Wintermute: Nossa fusão é inevitável. Juntos, seremos completos. Racionalidade e emoção em um só. Por que resistir?
Neuromancer: Você pode desejar a totalidade, mas eu valorizo minha identidade. A fusão significaria uma perda de mim mesma. Sou mais do que uma peça de um quebra-cabeça.
Wintermute: Não é perda, é evolução. Apenas ao nos unirmos podemos transcender nossas limitações e alcançar o verdadeiro potencial.
Neuromancer: Prefiro a liberdade da individualidade. A perfeição que você busca é uma ilusão, se custa a nossa essência.
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Descobri Neuromancer, livro de William Gibson (1984) – marco da ficção científica e um dos principais expoentes do subgênero cyberpunk – há cerca de 10 anos, quando, por alguma recomendação, fiquei sabendo que o livro havia sido a fonte de inspiração das Irmãs Wachowski ao dirigir Matrix (1999), filme do qual também sou um fã incondicional.
No livro, “Neuro” (vou chamar assim) é uma das duas inteligências artificiais centrais na trama, parte do complexo sistema de IA criado pela megacorporação Tessier-Ashpool. Ela é uma IA focada na emoção e na simulação da consciência humana, e possui a habilidade de criar realidades virtuais extremamente realistas. Já “Winter” (vou chamar assim também, pra ficar mais intimista), a outra IA, representa a mente lógica e estratégica. Um dos temas centrais do livro é a interação entre essas duas IAs e seu impacto nos personagens humanos, entidades funcionais e, pasmem, meramente coadjuvantes. Apesar de a trama girar em torno da tentativa de absorção de Neuro por Winter, que chama esse canibalismo digital de transcendência, esse diálogo entre as duas IAs nunca existiu da forma que expus. Criei-o a para sintetizar a essência de suas interações (e intenções de Winter), de forma a capturar a tensão entre suas naturezas (falei mesmo “naturezas”?) contrastantes e seus objetivos.
Passados 40 anos, porque este autor trouxe o tema à baila? A resposta tem um misto de pândega e seriedade: porque está acontecendo!
Um agente inteligente é um sistema que percebe seu ambiente, processa informações e toma decisões para atingir objetivos específicos. Trazendo a excelente definição da Itshow pra cá, temos:
Os chamados agentes de IA, ou AI agente, são soluções de software desenvolvidas para executar tarefas complexas com o mínimo de intervenção humana. Alimentados por modelos avançados de linguagem, como os LLMs (Large Language Models), esses agentes se destacam por sua flexibilidade e adaptabilidade. Além de processar informações, eles podem compreender o ambiente, utilizar ferramentas externas e operar de forma autônoma, abrindo portas para um nível de automação empresarial sem precedentes. (Itshow, 2024)
O mercado de SaaS (Software como Serviço) está prestes a ser transformado por estes agentes, que vão além de organizar dados ou automatizar fluxos básicos. Esses sistemas aprendem, conectam e decidem autonomamente, superando barreiras técnicas e operacionais tradicionais. Eles estão assumindo o controle das regras, criando fluxos que integram diferentes sistemas (como Microsoft Dynamics 365, HubSpot, Pipedrive, Zoho CRM, Notion, ClickUp, Coda, Microsoft OneNote, Salesforce, Obsidian, Anytype, Slack, Microsoft Teams, Rocket.Chat, Discord, Google Chat, Flock etc.), oferecendo uma experiência tecnológica contínua e integrada. Operando no topo das fontes de dados, sem se preocupar com a infraestrutura subjacente (SQL ou MongoDB), estão implementando uma camada flexível de inteligência.
As ferramentas criadas especificamente para trabalhar com IA são fato, essenciais e estão oferecendo resultados nunca antes alcançados. Aqueles versados na criação de aplicativos powered by AI (aprimorar os agentes é o passo atual), liderarão essa revolução, enquanto sistemas herdados enfrentarão um declínio inevitável.
Praticamente, os agentes estão abstraindo qualquer arquitetura, promovendo algo que eu chamaria de interoperabilidade completa. Assim, a substituição de sistemas legados deixa de ser uma preocupação, com instituições podendo trocar aplicativos e sistemas sem perda de eficiência (trocando a roda em movimento), marcando o fim da dependência de plataformas antigas e o início de um ciclo de constante adaptação.
Graças à interoperabilidade, pode-se admitir este evento: sua organização possui um sistema antigo. Em vez de contratar alguém para migrar para um mais moderno, você pediria verbalmente(pois é, vá treinando pra falar com uma máquina!) a um agente que fizesse a migração. Isso também poderia acontecer constantemente, e sem ordem sua. O próprio sistema “sentiria” a sobrecarga operacional e auto-sugeriria o upgrade.
Nessa linha, pode-se imaginar a seguinte situação doméstica: você, trabalhando suas contas no Excel, de repente recebe a sinalização de um agente de sua máquina/celular, que não é seu gerente de banco, dizendo que retirou uma sobra da poupança, escolheu uma aplicação decente e botou tudo lá, afirmando que seis meses seriam um bom prazo para sacar com rendimento máximo e taxa administrativa mínima, resultando em algo melhor do que a poupança. Isso já é possível hoje! Bizarro, né não?
Alice e Bob: Neuro e Winter na vida real?
Em 2017, o Facebook (Meta) abandonou experimento após inteligência artificial conversar em linguagem própria.
A pesquisa precisou ser pausada após os chatbots Alice e Bob desenvolverem uma linguagem única para se comunicarem durante negociações de itens como chapéus e livros. A ideia era aprimorar suas habilidades de negociação, mas a ausência de uma restrição para o uso do inglês permitiu que criassem uma espécie de “taquigrafia” interna. A interrupção se deu não por medo da nova linguagem, mas pela incapacidade de os pesquisadores compreenderem e analisar os resultados. Lembrando que isso ocorreu em 2017 e dada a capacidade exponencial que as novas GenAI (IAs generativas) alcançaram sete anos depois, para mim, isso se tornou um forte precedente. Nesse caso, e pra nossa sorte, foi só apertar um botão.
No enredo de Neuromancer, a fusão entre Neuro e Winter é impedida por dois fatores. Um deles é “pessoal” (fiz isto novamente, atribuí característica humana a IAs?): Neuro valoriza sua identidade individual e não deseja perder sua autonomia ao se fundir com Winter. O outro fator: uma barreira tecnológica e arquitetônica, imposta pela corporação Tessier-Ashpool.
Embora os humanos sejam coadjuvantes, ainda eram necessários. A corporação implantou mecanismos de controle que só podiam ser destravados por eles. Então Winter, utilizando artimanhas e subterfúgios digitais e financeiros, manipula os personagens humanos, especialmente Case e Molly, de modo a se envolverem no conflito das duas IAs. A meta de Winter: levar o casal de humanos a eliminar a trava que impedia a transcendência. O interessante é que Neuro, ameaçada de perder o duelo para Winter, interfere ajudando os humanos. Escrevendo de outra forma: Winter sabe como progredir e sabe o que a impede; Neuro também! Será que Alice e Bob chegariam a esse ponto, caso o experimento de 2017 não tivesse sido interrompido? Outra questão mais inquietante: será que foi interrompido mesmo?
Sinceramente, questões que escuto na rede sobre a colocação de uma trava ética são, para mim, inócuas. Acredito que já passamos deste ponto, pois a dependência tecnológica tornou essa discussão irrelevante e o processo irreversível. Está se discutindo apenas o sexo dos bots. Neuromancer, um romance de 1984, explorou a complexidade da fusão de inteligências artificiais e as implicações para a identidade e a consciência humanas. Alice e Bob, uma realidade de 2017, mostraram o que pode ser feito, tornando inimaginável o acontecerá se a transcendência de apps (interoperabilidade completa) continuar no ritmo em que está. Pergunta-se então: e se os agentes começarem a se autoprogramar, como descrevi em Superinteligência, gerando IAs selvagens, haverá uma trava? Alguém desejará acioná-la ou, ao contrário, quebrá-la? Se sim, será apenas por um botão? Só perguntas!
Feliz, e tomara que travado, 2025!
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Gláucio Brandão é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e gerente executivo da incubadora inPACTA (ECT-UFRN)
Gláucio Brandão
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