A incrível história de como o oxigênio atmosférico mudou a forma da pata de vertebrados que saíram da água
Para a Biologia do Século XX, novas mutações genéticas são a grande mola propulsora geradora de novidades. A evolução por novas mutações gênicas é especialmente difícil de explicar quando acontece em populações grandes, onde elas possuem baixa probabilidade de se estabelecer. Nas últimas décadas, no entanto, temos visto a descrição de diversos mecanismos onde novidades fenotípicas podem vir de novas informações ambientais.
O artigo que comento aqui é um belo exemplo de novos fatores ambientais trazendo novidade nos corpos de animais. Nele, Ingrid Cordeiro, trabalhando com a equipe de Mikiko Tanaka, mostrou que a perda das membranas interdigitais foi facilitada quando vertebrados invadiram o ambiente terrestre e entraram em contato com concentrações maiores de oxigênio.
Ingrid já é praticamente uma doutora, com uma visão madura sobre a ciência e o mundo. Seus trabalhos e de seus colaboradores são dignos de livro texto. Ela gentilmente respondeu algumas perguntas que lhe fiz por email. Curtam aqui a nossa conversa:
Eduardo Sequerra: Fale um pouco sobre você. Como você trilhou esse caminho até chegar em seu laboratório no Japão?
Ingrid Cordeiro: Na minha Graduação em Ciências Biológicas – modalidade médica e Mestrado pelo Programa de Ciências Morfológicas, ambos na Universidade Federal do Rio de Janeiro, eu me interessei pela área de biologia do desenvolvimento e aprendi muito com meu orientador, José Marques de Brito Neto, e co-orientadores, Maria Isabel Doria Rossi e José Garcia Abreu Jr. Eu acho essa área fascinante, e que tem muito em comum com biologia de células-tronco. A ideia de ir para o Japão começou quando descobri a oportunidade de bolsas para alunos estrangeiros, oferecidas pelo governo japonês. Eu decidi com meu noivo, na época também prestes a se graduar no Mestrado, que iríamos tentar aplicar juntos. Então, me interessei pelos projetos da professora Mikiko Tanaka, no Instituto de Tecnologia de Tóquio, que estuda a evolução das nadadeiras e membros durante no desenvolvimento de várias espécies. Depois de quase um ano de seleção, eu finalmente vim parar no Japão!
ES: A ideia da ação do oxigênio regulando a morte da membrana interdigital é muito legal. Vocês acham que as vias moleculares que regulam a vascularização das membranas podem estar mediando a ação do oxigênio na ativação da morte programada? Ou o oxigênio ambiental difundindo pelo tecido daria conta?
IC: Achamos que os vasos são fundamentais nesse processo. A morte celular nas membranas interdigitais tanto foram induzidas pelo aumento do número de vasos na perna do sapo, quanto pelo aumento do oxigênio em volta dos girinos. É possível que, ao longo da evolução, as vias moleculares de vascularização tenham sido reguladas para oferecer mais oxigênio às membranas interdigitais em amniotas, vou comentar melhor sobre isso na próxima resposta.
ES: Penso que o legal desse mecanismo é que ele não depende de mutação Seria uma novidade evolutiva induzida por mudança de hábito. E pode acontecer em muitos indivíduos ao mesmo tempo. Como você vê a relação entre mutações, plasticidade e origem de novas espécies na invasão do ambiente terrestre?
IC: Essa morte celular não depende de mutações. A principal mudança de hábito foi passar a ter ovos terrestres e com desenvolvimento direto – sem girinos. Esses anfíbios de desenvolvimento direto costumam botar um menor número de ovos com maior “custo”: eles se desenvolvem mais lentamente, são maiores, contém mais nutrientes, respiram mais oxigênio e muitas vezes tem cuidado parental. Então, achamos que o mecanismo de morte celular surgiu como um subproduto dessa nova estratégia. Imagino que tenha sido essencial na invasão do ambiente terrestre: os ovos de desenvolvimento direto são mais similares aos ovos de amniotas, do que ovos de anfíbios com girinos. O interessante é que com essa nova etapa durante o desenvolvimento, os ancestrais dos amniotas passaram a ter duas formas de remover as membranas entre os dedos: variando a proliferação celular – como os anfíbios atuais – ou usando a morte celular. Hoje, morte celular é a única forma pela qual os amniotas conseguem remover as membranas entre os dedos. Acreditamos que mutações estiveram envolvidas nessa segunda etapa, possivelmente em vias de resposta ao estresse oxidativo ou angiogênese.
ES: Vocês também estudam algumas espécies de aves no seu laboratório. Você acha que a apoptose dependente de oxigênio também pode estar envolvida na origem de patas com membranas digitais em aves ou até mamíferos?
IC: A morte celular nas membranas interdigitais é uma característica comum dos amniotas, portanto, espécies que mantém as membranas precisam inibir a sinalização que indica “destino interdigital” – a via de Bmp. Os patos expressam o inibidor de Bmps gremlin1 nas regiões intercelulares. Mas o contrário também existe: mamíferos como os cavalos e camelos expandiram a área que expressa Bmps, fazendo com que alguns dedos desaparecessem.
ES: Quais são as principais contribuições do seu trabalho?
IC: Cada vez mais percebemos o quanto o ambiente pode influenciar o desenvolvimento através de mudanças epigenéticas, no metabolismo etc. Acho que isso torna ainda mais importante o estudo de diversas espécies além dos organismos-modelo; só assim poderemos entender o quanto a atividade humana pode afetar a fauna. Por exemplo, os anfíbios têm sofrido extinções e uma diminuição na população especialmente alta em relação a outros animais nas últimas décadas, causadas pela perda de habitat, aquecimento global, pesticidas e introdução de doenças pelo comércio de animais de estimação. Entender mais o quanto alterações no ambiente afetam o desenvolvimento dessas espécies é importante para orientar a criação de políticas ambientais no Brasil, o país com maior diversidade de anfíbios do mundo.
Referência
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Eduardo Sequerra
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