Dois estudos recentes abriram a possibilidade de cultivarmos embriões de primatas em fases que só acontecem após a implantação
Todo embrião de animal passa por uma fase onde todas as células são pluripotentes, isso é, elas podem gerar todas as células do nosso corpo. Esta fase, o blastocisto, acontece antes da implantação do embrião na parede do útero. Assim, nossas clínicas de fertilização comumente lidam com embriões nessa fase. Acontece que após a implantação a história muda. O embrião começa a produzir junto com as células da mãe todos os tecidos vitais para o seu metabolismo, os tecidos extra embrionários. Assim, se um embrião for permitido se desenvolver in vitro na clínica, ele simplesmente morre, por falta de nutrientes, gases etc. Atualmente, é permitido que laboratórios de pesquisa estudem embriões humanos excedentes das clínicas (e que seriam descartados) mas não implantá-los. Mas e se conseguíssemos criar condições para que estes embriões avancem no desenvolvimento sem precisar implantá-los no útero?
Há muito tempo conseguimos observar o desenvolvimento pós blastocisto de outros animais. Peixes, anfíbios e aves completam estas fases em ovos fora da mãe. Assim, desde o começo do século XX interferimos no desenvolvimento destes embriões e conseguimos acompanhar os efeitos no tempo. Foi assim que Hilde Mangold e seu orientador, Hans Spemann, mostraram em 1924 que um pequeno grupo de células da gástrula consegue instruir todas as demais células a se diferenciarem no corpo todo do embrião. Para isso, Mangold transplantou esse grupo de células, que eles chamaram de organizador, para um segundo embrião que já possuía o seu próprio organizador. E o que eles observaram foi que o segundo embrião, agora detentor de dois organizadores, desenvolveu dois eixos corporais. Esse experimento foi muito importante para mostrar que as células não “sabem” individualmente o que elas vão ser, elas precisam conversar umas com as outras para gerar um corpo completo. Mais tarde, conseguimos demonstrar que todos os embriões de animais possuem seu organizador, mas que o processo de organização podia ser diferente. Em mamíferos, no entanto, durante muito tempo só conseguíamos ver semelhanças e diferenças congeladas no tempo, uma vez que não temos acesso ao que se passa dentro do útero.
Tudo mudou quando o laboratório de Magdalena Zernicka-Goetz publicou em 2012 uma técnica de cultura de embriões de camundongos até as fases de gastrulação e a formação do eixo corporal. Neste método, Magdalena e seu grupo colocam os embriões em um hidrogel coberto com proteínas, no intuito de simular o tecido uterino onde se implantariam normalmente, e em meio contendo nutrientes específicos para manter seu metabolismo e desenvolvimento. A partir daí, eles conseguiram utilizar diversas técnicas para marcar células, filmá-las e eliminá-las para determinar quais delas formam o organizador de camundongos. Um mundo novo se abriu para nós, agora podemos acompanhar embriões de mamíferos durante fases antes ocultas pelo útero.
Mas será que aquilo que aprendemos com a gastrulação de camundongos podemos assumir como verdade para todos os mamíferos, e mais importante, para humanos? A cultura de embriões humanos em fases além do blastocisto (na prática, 14 dias, que seria o início da gástrula) esbarra em leis e regulações duras, proibitivas. Mas possivelmente a cultura de embriões de outros primatas pode nos ensinar mais um pouco sobre o que acontece com os nossos. Foi aí que dois grupos chineses publicaram recentemente a primeira cultura de embriões de primatas durante a gástrula (até 20 dias). A espécie foi o macaco-comedor-de-carangueijo (Macaca fascicularis). Estes grupos conseguiram observar pela primeira vez em primatas a formação das cavidades amniótica e vitelínica, o surgimento das células germinativas (que no futuro irão gerar os gametas) e a formação do eixo antero-posterior do corpo. Assim, pela primeira vez podemos estudar fenômenos muito importantes para o nosso desenvolvimento em uma espécie que provavelmente contém muito mais semelhanças do que as espécies estudadas até agora. Estes estudos não dependem de cirurgias ou sacrifícios das fêmeas que carregam estes embriões, somente as mesmas técnicas de obtenção de óvulos que aplicamos em mulheres nas clínicas de fertilização.
Claro que o avanço da tecnologia traz consigo novas discussões. Os fenômenos descritos em embriões de Macaca são um bom reflexo de como os mesmos acontecem em embriões humanos? Só tem um jeito de saber, e agora temos a tecnologia para isso. A tal regra dos 14 dias como limite para o tempo de cultura de embriões humanos tem sua origem em questões morais (escrevi diversos textos com esta discussão, veja os links abaixo). É ao redor desta data que nossa gastrulação começa. É justamente na gastrulação que as células deixam de ser multipotentes, isso é, possuírem a capacidade de gerar todas as células do embrião, para se comprometer com linhagens específicas. Assim, o embrião se torna um indivíduo na gastrulação. Isso por que o bolinho de células não pode mais se dividir em dois e gerar gêmeos monozigóticos. É um pouco depois do início da gástrula que algumas células começam a se comprometer com a linhagem neural. Então muitos acham que 14 dias é uma salvaguarda para ter certeza de que o embrião não sente nada ao ser descartado. Mas vimos aqui que esta salvaguarda é demais exagerada. O embrião só vai ter um cérebro ativo lá para a 23a semana. Então, nos preparemos queridos, a discussão sobre a possibilidade de estudar a gastrulação humana in vitro bate às nossas portas. E ao meu ver faz todo o sentido.
A gastrulação é talvez o momento mais importante do nosso desenvolvimento. É justamente neste período, logo após a implantação, que a maioria das gravidezes são perdidas. A frustração com a infertilidade traz sofrimento para milhões de casais. É fundamental que saibamos detalhes sobre o que se passa no desenvolvimento humano nesta fase para também melhorarmos a vida daqueles que chegam a se tornar uma pessoa. Precisamos estudar com agentes ambientais que comumente contaminam nossos embriões afetam estes fenômenos. Mas para isso, é preciso que legisladores, juristas e toda a sociedade ouçam o que a ciência tem a dizer.
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Referências:
Morris SA, Grewal S, Barrios F, Patankar SN, Strauss B, Buttery L, Alexander M, Shakesheff KM, Zernicka-Goetz M (2012) Dynamics of antero-posterior axis formation in the developing mouse embryo. Nature Communications 10.1038/ncomms1671
Ma H, Zhai J, Wan H, Jiang X, Wang X, Wang L, Xiang Y, He X, Zhao Z, Zhao B, Zheng P, Li L, Wang H (2019) In vitro culture of cynomologous monkey embryos beyond early gastrulation. Science 10.1126/science.aax7890
Niu Y, Sun N, Li C, Lei Y, Huang Z, Wu J, Si C, Dai X, Liu C, Wei J, Liu L, Feng S, Kang Y, Si W, Wang H, Zhang E, Zhao L, Li Z, Luo X, Cui G, Peng G, Belmonte JCI, Ji W, Tan T (2019) Dissecting primate early post-implantation development using long-term in vitro embryo culture. Science 10.1126/science.aaw5754
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Eduardo Sequerra
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