Em 1887, Argemiro Augusto da Silva propôs uma inovação tecnológica baseada em fibras vegetais bem brasileiras
Em 1854, o mecânico alemão Johann Heinrich Göebel usou fibras de bambu carbonizadas em um vidro vazio de água de colônia a vácuo, e produziu uma lâmpada que chegou a ficar acesa por cerca de 200 horas.
Pouco mais de 20 anos depois, um alagoano natural de Pão de Açúcar tentava substituir o modelo Swan-Edison de lâmpadas elétricas por uma alternativa cujo filamento era fabricado não com um condutor metálico, mas sim com fibras vegetais de alfavaca, uma planta encontrada nos sertões de Alagoas, Pernambuco e Bahia. Acredita-se que, à época do pedido de patente, a lâmpada de Argemiro estava acessa há pelo menos sete meses na sua casa, em Maceió.
Quem contou esta história (bem contada) foram sete pesquisadores ligados à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), à época do artigo que foi autorado em 2011 e publicado em 2013, pela Revista Brasileira de Ensino de Física. O trabalho, intitulado Argemiro e a lâmpada das Alagoas: uma experiência na Belle Époque, é um interessante exemplar de história da ciência.
Curto e interessante, foi escrito principalmente com base em jornais da época; contém elementos biográficos e articula claramente a contextualização do desenvolvimento de um processo de ciência, tecnologia e inovação em seus níveis global, nacional e regional, de maneira que fazem o leitor refletir sobre as continuidades e descontinuidades históricas de lá até o presente. E não faltou nem um boa fofoca :X
Cenário
No texto, aprendemos que não é bobagem afirmar que a ciência é uma linguagem global: o inventor nordestino tinha o conhecimento científico das lâmpadas elétricas de sua época. A indústria, porém, é outra coisa. Por isso, o artigo também discute as dificuldades técnicas do caminho entre um brilhante protótipo e a vias comerciais realmente existentes, ligadas ao sistema de iluminação pública daquela época, especialmente no Rio de Janeiro que, até então, era sede do governo e província mais avançada e cosmopolita do Brasil.
Nesse esteio, há uma comparação entre o caminho comercialmente mal sucedido de Argemiro e o sucesso industrial de dois cavalheiros, Adolpho Aschoff (também alagoano) e Aarão Reis, que exploraram o dito ramo da eletricidade urbana na antiga capital do país.
Treta técnica
No entanto, o artigo narra que esses dois últimos começaram a trocar ideias sobre a lâmpada elétrica como produto escalonável justamente por causa da exposição que Argemiro fez “para apresentar sua invenção ao público no Lyceu de Artes e Ofícios”, RJ.
Tal qual um investidor-anjo avaliando um pitch de startup, Aarão Reis fez a Argemiro uma porção de questionamentos técnicos sobre a viabilidade, usabilidade, eficácia e vantagens competitivas do produto. Um não gostou das perguntas nem o outro da resposta, ainda que a situação de patente sob análise explique um pouco da falta de exposição destes detalhes na situação, que não terminou de maneira polida.
Porém, no dia seguinte à “descortesia”, Reis achou por bem vir ao público ele mesmo, narrar o incidente, e repetir suas cinco questões por escrito no jornal a Gazeta de Notícias:
“1. A fibra usada como filamento da lâmpada e como ela era exatamente empregada; 2. O tempo médio de resistência da fibra à incandescência; 3. O número de velas a que correspondia a sua luz; 4. O número máximo de lâmpadas que corresponderia a cada cavalo-vapor; e, 5. O custo do seu fabrico, considerando a qualidade e quantidade dos materiais empregados, dificuldade maior ou menor da mão-de-obra, o trabalho elétrico total absorvido pela lâmpada, o número de lâmpadas correspondente a cada cavalo elétrico e o rendimento elétrico do foco luminoso”.
Aschoff replicou em defesa da “lâmpada brasileira” de Argemiro, seu amigo, tentando demonstrar a mera existência do protótipo era um feito notável e que o mérito das questões de Reis se não necessariamente por falhas na concepção, mas pelas deficiências do sistema de produção artesanal.
É cabível imaginar que a perspectiva de Arão Reis se filiava ao viés pragmático de um meio para suprir determinados fins, enquanto na de Adolpho Aschoff havia um fundo latente de consideração sobre a possibilidade de abrir caminhos para o desenvolvimento nacional.
Diante de uma réplica tão estratégica, Reis treplicou recorrendo apenas a um argumento de autoridade, a sua própria, já que Aschoff havia sido seu aluno. Mas a discussão acabou desencadeando uma colaboração positiva: “Passado o calor da disputa epistolar, prevaleceram os vínculos acadêmicos e profissionais, que permitiram que ambos trabalhassem juntos em várias oportunidades”, nos conta o artigo.
Desenlace
Entre as considerações finais, um melancólico diagnóstico do contexto que foi palco para história de Argermiro, que pela ótima qualidade de forma e conteúdo, reproduzo aqui para os leitores de Nossa Ciência:
“Argemiro pagou o preço de ser um inventor na periferia econômica, pois, o Brasil era um país essencialmente agrícola, não possuía indústria de ponta, nem muito menos indústria de material elétrico e nem iluminação elétrica pública. As lâmpadas elétricas na época eram usadas basicamente na iluminação de prédios, ruas e praças, tanto assim que, Campos e Porto Alegre eram as únicas cidades do país que possuíam um sistema restrito de iluminação elétrica pública. Sem contar que Argemiro era um autodidata que construiu sua lâmpada de modo artesanal, quando os concorrentes estrangeiros eram dotados de uma infraestrutura mais adequada”
P.S.
Como jornalista, finalizo deixando os parabéns aos autores do artigo que inspirou esta coluna.
Antonio Lopes de Souza, Margareth Guimarães Martins, Maria Ana Quaglino, Sergio Sami Hazan (Laboratório de Novas Tecnologias para o Ensino da Engenharia, Departamento de Engenharia Elétrica – UFRJ) e Almir Pita Freitas Filho (Instituto de Economia – UFRJ)***
Porque é bom ler acadêmicos escrevendo assim 🙂
***Observe-se que estes vínculos institucionais dizem respeito à época do artigo.
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