Não é só uma piada… Linguaruda

segunda-feira, 9 junho 2025
Quem acha que se trata “só de uma piada” deveria buscar compreender a origem inconsciente de seu humor hostil, a mesma fonte de seu prazer perverso. (Foto: Istock Photo)

E Freud explica.

(Cellina Muniz)

Recentemente, vimos a polêmica a respeito dos limites do humor se reacender mais uma vez por conta do pronunciamento em live de Leo Lins, o pretenso humorista condenado pela juíza Barbara de Lima Iseppi a oito anos e três meses de prisão, além de multa, em razão do seu stand-up com piadas que abordam temas indigestos como abuso sexual, pedofilia, racismo, para citar somente alguns. Se, por um lado, a decisão judicial é vista por uns como respaldo à censura e à coibição à liberdade de expressão, por outro lado, outros veem nela uma atitude moral necessária contra discursos de ódio e em defesa de uma sociedade democrática e menos injusta.

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O exemplo desse embate se mostra ainda mais significativo neste ano de 2025, quando se completam 120 anos de uma obra emblemática a respeito das relações entre humor e pulsões (de morte e de vida). Estou me referindo a “Os chistes e sua relação com o inconsciente”, de Sigmund Freud.

Sim, também o riso pode ser encarado como objeto de um viés psicanalítico, como confirmam essa e outra obra posterior (“O Humor”, de 1927). Tal como nos processos oníricos, Freud afirma que os chistes usam basicamente dois tipos de técnicas – a condensação e o deslocamento. Enquanto na primeira técnica (os trocadilhos, de modo geral) há uma abreviação, a segunda implica uma quebra de raciocínio. Na primeira parte do ensaio, sua análise minuciosa se detém na condensação e em outros artifícios semelhantes (usos múltiplos para uma mesma palavra, duplo sentido), mas é na segunda parte que a discussão sobre a relação entre conteúdo manifesto e conteúdo latente apresenta importantes insights para discutirmos não só sobre como se faz rir, mas também do que se ri e seu propósito.

Cena do filme “O sentido da vida”, do grupo inglês Monty Python, cujo humor era notadamente nonsense.

Nessa perspectiva, é possível pensar uma classificação para os tipos de chistes ou de humor, de maneira geral. Segundo Freud, os chistes podem ser “inocentes” ou “tendenciosos”, além de um terceiro tipo, os chistes “nonsense” (que jogam com o absurdo e o ilógico).

Os chistes inocentes consistem basicamente em piadas ou brincadeiras que não têm propósito de ofender ou ferir alguém, usados geralmente apenas para expressão lúdica ou alívio de alguma tensão.

O par “burrito”/ “inteligentito” (ainda que questionado pelo “maior medo”), é uma brincadeira ingênua com a língua que, na postagem acima, não ofende ninguém

Já em relação aos chistes tendenciosos, por meio deles há o propósito de ridicularizar, criticar ou expressar alguma agressividade (reprimida) de forma velada. Dentro dessa categoria, Freud assinala dois subtipos: os casos “hostis” (usados para atacar ou ridicularizar alguém) e os casos “obscenos” (usados para expressar conteúdo sexual de forma jocosa).

Assim, para dar vazão a certa hostilidade, há quem faça piadas contra tiranos e ditadores (conhece aquela charada sobre como se colocava a gravata no Presidente Castelo Branco?) e há quem faça piada como Leo Lins, zombando de vítimas de abuso sexual ou do incêndio na boate Kiss, por exemplo.

Então, se os chistes tendenciosos “tornam possível a satisfação de um instinto (seja libidinoso ou hostil) face a um obstáculo”, permitindo “extrair prazer”, cabe notar que, mesmo que de maneira inconsciente, o prazer do riso aí advém de uma relação agressiva com o mundo, com certo indivíduo ou grupo identitário.

Por que tal agressividade?

Por que num show de 74 minutos, Leo Lins dirige piadas discriminatórias e ofensivas a nordestinos, idosos, homossexuais, pessoas com deficiências, obesos, judeus, evangélicos e indígenas?

Por que tanto ódio disfarçado de humor?

Por que tal agressividade?

Por que num show de 74 minutos, Leo Lins dirige piadas discriminatórias e ofensivas a nordestinos, idosos, homossexuais, pessoas com deficiências, obesos, judeus, evangélicos e indígenas?

Por que tanto ódio disfarçado de humor?

O que Leo Lins e todos aqueles que acham que se trata “só de uma piada” deveriam fazer é buscar compreender a origem inconsciente de seu humor hostil, a mesma fonte de seu prazer perverso.

Um pouquinho de terapia ajudaria. Freud explica isso, há pelo menos 120 anos.

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

 

Referências das imagens:

Imagem 1

Imagem 2: @diferentona

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