Mulheres negras e indígenas escrevem muito, mas encontram dificuldades para publicar porque o sistema desvaloriza a sua escrita.
Por Andrielle Mendes.
Você costuma publicar o que escreve? Ou engaveta, apaga e joga fora as suas palavras? O que tem nas suas palavras que não podem ser lidas? Por que nossas palavras precisam ser escondidas? O que estamos tentando esconder? O que estamos tentando proteger? Ou, melhor, quem estamos tentando proteger?
Se eu fosse publicar tudo o que já escrevi, já teria lançado uns cinco ou seis livros, no mínimo. Escrever, para mim, não é difícil. Difícil mesmo é compartilhar o que eu escrevo. Já escutei várias vezes: “escreve um livro que eu compro!”. A questão é que, para vender, é preciso precificar e muitas de nós, escritoras racializadas, não conseguimos precificar nossos escritos, porque não conseguimos valorar a nossa escrita.
Mesmo publicando aqui (e acolá), não me vejo como uma publicadora. E não é porque eu não encontre as palavras; é porque as palavras que me acham vêm manchadas de dor, injustiça, violência, rejeição. Digo para irem embora. Mas elas voltam! Quase sempre acompanhadas pelo fantasma da rejeição ulterior.
O ofício de publica-dor, de publicar a dor, de tornar a dor pública, não é comigo. E, mesmo se fosse, nos lugares onde eu (nem sempre) me encontro, não parece haver espaço para publica-dor-as. Se a minha dor escorre para o papel, me chamam de piegas, raivosa ou ridícula; me acusam de extravasar as emoções. É óbvio que eu extravaso. Se minhas e-moções, se minhas águas internas transbordam, é porque estou cheia, ora. Estou cheia de não poder falar sobre violência.
Acontece que aprendi, lendo autoras negras e indígenas, que a violência não some, se eu deixar de escrever sobre ela. Então, continuarei chamando a violência de violência. Afinal, a floresta não vai deixar de queimar, se eu parar de falar sobre o fogo.
Regina Dalcastagné escreveu, certa vez, que a maioria dos escritores, que publica pelas grandes editoras no país é homem, branco, sudestino, de classe média ou alta. Eles também são maioria em outras áreas de grande legitimidade social. “A literatura está nas mãos dos homens brancos”, observa Conceição Evaristo – e a política, o direito, a ciência também. Tanto que escrever e publicar é considerado um ato político, quando se é uma mulher negra ou indígena, porque é “uma maneira de subverter o imaginário brasileiro, no qual a mulher negra (e a indígena) ocupa papéis, que passam longe da escrita”.
Nós, mulheres negras e indígenas, somos maioria populacional, mas os homens brancos ricos seguem sendo a maioria entre os doutores, entre os legisladores, entre os juízes, entre os publicadores. Por que somos maioria apenas entre as que trabalham mais, ganham menos, e levam menos crédito? Precisamos escrever e ler sobre isso fora e dentro das universidades, onde pesquisadoras continuam desistindo de suas carreiras após anos de agressão, abuso e assédio.
Semanas atrás soube de mais uma amiga, que desistiu da pós-graduação. Não sei dizer, até hoje, quem desistiu de quem: se foi ela que desistiu da universidade ou se foi a universidade que desistiu dela… Sinto raiva, quando penso que estamos alimentando a máxima “os incomodados que se mudem”; os incomodados que tranquem as matrículas; os incomodados que saiam da academia. Por que são os incomodados que precisam se mudar? Por que as mulheres racializadas continuam sendo interrompidas, dentro e fora da universidade?
Djamila Ribeiro tem uma hipótese: “quando um sistema está habituado a definir tudo, bloquear os espaços e as narrativas e nós, a partir de um processo de descolonização, começamos a adentrar esses espaços, começamos a narrar e trazer conhecimentos que nunca estiveram presentes nesses lugares, claro que isso é vivenciado como algo ameaçador”, escreve.
O sentimento de posse do homem sobre a mulher, o controle, o abuso, a culpabilização da vítima e a naturalização da violência contra a mulher têm como coeficiente comum o machismo enraizado na nossa sociedade, fundada em bases culturais extremamente misóginas, acrescentam Bruna de Lara, Bruna Rangel, Gabriela Moura, Paola Barioni e Thaysa Malaquias, do coletivo Não me Kahlo.
“O racismo, constitutivo do patriarcado e do capitalismo, está diretamente ligado ao colonialismo que marcou os territórios materiais e simbólicos articuladores da pluralidade das mulheres que habitam o espaço-tempo chamado América. Esses elementos são estruturadores dos modos de produção e reprodução do viver no presente, modos que se convertem em resistências, já que as fronteiras desses lugares de opressão também são habitadas pelo desejo de liberdade e são depositárias das utopias, que tecem, já agora o futuro das que resistem e estão subjugadas”, complementa Rivane Arantes.
Por isso, “enfrentar a violência contra as mulheres pressupõe questionar e transformar as estruturas que reproduzem as desigualdades dentre homens e mulheres, a desigualdade econômica e o racismo nas relações sociais; bem como o modelo de desenvolvimento, que produz vulnerabilidade e violência contra as mulheres”, orienta Analba Teixeira.
Lendo Djamila Ribeiro, Analba Teixeira, Rivane Arantes, Conceição Evaristo e Chimamanda Adichie para escrever este texto, entendi, porque estou sempre falando sobre violência (e, às vezes, com violência) nos encontros que participo. É porque só agora encontrei um lugar seguro para falar sobre isso. Ao invés de ocultar a raiva, decidi organizar a raiva para evitar que os incomodados sempre se mudem.
Você, que decidiu se retirar para se fortalecer, eu te vejo e te respeito! Sawabona! Olha para você primeiro. Se respeita. Depois, tenta se aproximar das pessoas que conseguem te ver e te respeitar também. Mas não permaneça calada para sempre. Ninguém, além de você, tem condições de falar o que você fala. O silenciamento só protege o agressor. A gente enfrenta a violência contra as mulheres, quando passa a nomear a violência, não importa o lugar onde estejamos. Você não precisa seguir sozinha. Somos muitas e estamos nos organizando.
Olho para trás e vejo que caminhamos muito, no que diz respeito ao direito à educação. Minhas avós, por exemplo, não frequentaram a escola. Minha mãe não frequentou a universidade. Mas minha irmã e eu entramos no doutorado. Nossas bisavós e tataravós esfolaram os pés para que eu e minha irmã pudéssemos aprender as palavras que elas não puderam conhecer. Volta e meio evoco a memória das minhas mais velhas para me perguntar: o que, afinal, estou fazendo com as palavras que aprendi? Minha bisavó benzedeira, mãe Naninha, que nunca frequentou uma escola, curava pelas palavras. Será que as palavras que estou aprendendo também servem para curar? Será que estou disposta a colocar minhas palavras à serviço da minha comunidade?
Até hoje lembro quando o cineasta Buca Dantas falou, numa roda de realizadores audiovisuais, que “todo o mundo tem uma história para contar”. Senti vontade de perguntar: “Tem certeza? Todo o mundo mesmo? Qualquer pessoa? Até eu?”.
Mas me calei e, por ter me calado, custei a aprender que “as histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada” (Chimamanda Ngozi Adichie). Mais de dez anos após aquela roda sobre narrativa audiovisual, finalmente aprendi que o fim do mundo, como já dizia Ailton Krenak, é a possibilidade de contarmos sempre mais uma história (nossa).
Referências:
Reportagem Conceição Evaristo: “a literatura está nas mãos de homens brancos”, no Correio Braziliense.
Livro Quem tem medo do feminismo negro, de Djamila Ribeiro
Livro O perigo de uma história única, de Chimamanda Ngozi Adichie
Livro #Meu amigo secreto, do coletivo Não me Kahlo
Livro Meditações sobre feminismos, relações sociais e lutas antirracistas, de Rivane Fabiana de Melo Arantes.
Livro Violência contra as mulheres, de Analba Brazão Teixeira.
Livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak.
A coluna Diversidades é atualizada às segundas-feiras. Leia, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #Diversidades. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
Leia a coluna anterior: Dependência e morte! O Brasil da barbárie bolsonarista.
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
Andrielle Mendes
Deixe um comentário