Como o vírus zika, anticorpos maternais e cianobactérias presentes na água de beber podem ter somado efeitos para o surto de microcefalias
Nossos sistemas imunes são especialistas em reconhecer seres estranhos dentro dos nossos corpos. Especialistas em transplantes sabem desde a segunda guerra mundial que nossos corpos rejeitam órgãos de outras pessoas quando transplantados. Os embriões, no entanto, quebram esta regra. Embriões compartilham apenas metade do genoma de sua mãe, a outra metade é formada pelo DNA herdado do pai. Para contornar este dilema imunológico, fêmeas de mamífero quando estão grávidas desenvolvem uma imunotolerância típica desta fase, que é regulada por uma delicada rede de sinalizadores celulares e moleculares. Mas acontece que esta rede reguladora pode ser abalada por diversos agentes externos ou internos, e a resposta imune da mãe contra o bebê ser ativada.
A primeira boa evidência de quebras no balanço mãe-embrião que podem levar a problemas no desenvolvimento do sistema nervoso vem do estudo do autismo. Diversos estudos demonstram que a probabilidade de haver casos de autismo é maior em famílias com histórico de doenças autoimunes, como artrite reumatoide e psoríase. Acontece que durante a gestação, anticorpos maternais acessam o líquido cerebrospinal graças a natureza mais permissiva da barreira que separa o sangue do cérebro nesta idade. Da mesma forma, experimentos em animais demonstraram que anticorpos contra alvos de cérebro podem levar a problemas no desenvolvimento do sistema nervoso e alterações no comportamento da prole. Mais tarde, uma série de trabalhos demonstrou que mães de autistas possuem mais anticorpos que reagem contra proteínas típicas de sistema nervoso, e quando estes anticorpos são injetados no cérebro de embriões de animais, levam a defeitos de desenvolvimento. Assim, parece que durante a gravidez de alguns pacientes autistas (não necessariamente todos), acontece uma quebra na imunotolerância da mãe que a leva a produzir anticorpos contra o cérebro do embrião.
O que acontece com este balanço quando entra o vírus zika na história? Em um artigo recente, Robbiani e diversos colaboradores brasileiros e americanos mostraram que mães que produzem níveis maiores de anticorpos contra vírus zika apresentam uma maior probabilidade de darem a luz a bebês com microcefalia. Os anticorpos das mães de pacientes microcefálicos, quando testados em ensaios específicos em células em cultura, estão mais associados a um efeito em que o anticorpo aumenta a infecção celular pelo vírus e até facilita a infecção de células que não seriam infectadas. A mesma coisa acontece em macacas rhesus grávidas. Quando injetadas com o vírus zika durante a gravidez, as fêmeas que produzem mais anticorpos com o efeito de facilitação da infecção, testado por esse ensaio em cultura, tem embriões com mais danos ao cérebro. Assim, existe uma associação entre o fato dos anticorpos maternos contra zika aumentarem a infecção pelo vírus e a ocorrência de microcefalias. No entanto, temos que ter alguns cuidados com as conclusões aqui. Os autores mostraram uma correlação entre os dois fenômenos, o que quer dizer que eles apenas mostraram que os dois acontecem juntos, não que um causa o outro. Mas de qualquer forma, acende um alerta para qualquer um que esteja tentando desenvolver uma vacina contra zika. Pode ser que tenha um efeito indesejado na gravidez, aumentar o dano ao cérebro fetal.
A esta altura, a hipótese de que o sistema imune maternal pode estar se voltando contra o cérebro embrionário é bem plausível. Mas por que em alguns pacientes ele se ativa e em outros não? Como dito acima, o motivo pode estar dentro da mãe ou em seu ambiente. Grávidas com doenças autoimunes têm uma imunotolerância mais frágil. Mas provavelmente doenças autoimunes não explicam a grande quantidade de casos que observamos durante o surto. E foi aí que o grupo do Stevens Rehen, no Rio de Janeiro, se uniu a diversos outros grupos brasileiros para testar uma interessante hipótese, a de que um fator ambiental presente na água de beber na região Nordeste é um facilitador das malformações por zika. Acontece que o Nordeste brasileiro tem um histórico de crescimentos descontrolados de cianobactérias em seus reservatórios, e estas cianobactérias produzem neurotoxinas paralisantes, como a saxitoxina. Como eles testaram isso?
O primeiro passo era ver se a hipótese fazia sentido histórica e geograficamente. Para isso, eles usaram o banco de dados do SisAgua (do Ministério da Saúde, disponível online) para medir a ocorrência de cianobactérias e saxitoxina ao longo do país. O que eles descobriram foi que no período de 2014 a 2018, período de grandes secas em nossa região e quando ocorreu os surtos de zika e microcefalias, havia mais cianobactérias e saxitoxina no Nordeste. Mas e o desenvolvimento do cérebro, fica pior quando saxitoxina é combinada ao vírus zika? Para testar essa pergunta eles utilizaram organóides de cérebro, pequenas bolinhas de células induzidas a se diferenciar em sistema nervoso a partir das células da pele de doadores. E o que eles viram foi que as células mais jovens, aquelas em divisão que dão origem a todas as outras, morrem mais quando a combinação zika + toxina é dada. E o mesmo efeito sobre estas células progenitoras é reproduzido quando a mesma combinação é dada para camundongas grávidas (zika no peritônio e saxitoxina na água de beber). Até mesmo o córtex cerebral perde espessura, o que eles alegam ser uma malformação. O problema do experimento com camundongos foi que eles não mostram que o zika migra do peritônio até o cérebro do embrião. Nem a saxitoxina tampouco. Para mostrar a ocorrência de uma malformação, tem que se mostrar a especificidade do efeito no tecido afetado. No caso, pode ainda estar havendo uma restrição do crescimento do embrião inteiro, por um efeito sobre a placenta por exemplo. Ia ser bom ver a qualidade da placenta, e os tamanhos da cabeça e do corpo do animal nesses experimentos. Mas como o artigo ainda é um preprint, ainda vai ser criticado por pares e evoluir. De qualquer forma, esta é a primeira hipótese publicada para explicar a maior frequência de microcefalias na região Nordeste. E o efeito sinergético demonstrado nos experimentos de organóides é bem bom. Ainda que sem mostrar se saxitoxina é realmente um facilitador da infecção por zika ou um matador independente.
Já que não está demonstrada a ação direta de saxitoxina sobre a infecção por zika, será que pode haver outro fator contribuindo para o pior destino das crianças que experimentaram os dois durante a gravidez? O sistema imune maternal é um bom candidato. A intoxicação proveniente das cianobactérias pode ser um gatilho para quebra de imunotolerância maternal. Assim, o vírus zika induziria microcefalias em um cenário em que os anticorpos maternais acabam aumentando o estrago. Está bem mostrado nos casos de mães de autistas que esta quebra na imunotolerância pode ser estimulada por outras infecções durante a gravidez, como bactérias e vírus. A associação de diversas infecções é comum em populações vulneráveis do Nordeste. Assim, o delicado balanço entre o sistema imune maternal e o embrião pode ser um conciliador de diversas hipóteses que tentem explicar por que nossa região teve mais casos.
Claro que tudo isso ainda precisa ser demonstrado. E para isso, nosso governo tem que entender que as respostas, e medidas preventivas para evitar novos surtos, só vêm com investimento público em ciência. Todos os dados discutidos neste texto tiveram sua base no investimento público em ciência brasileira. Até o sistema público de monitoramento da qualidade da água, que pra muitos pode ser um simples banco de dados, gerou a melhor correlação até agora para explicar a maior frequência de microcefalias no Nordeste.
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Leia o texto anterior: Um salto gigantesco para um micróbio
Eduardo Sequerra
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