Pesquisadora reflete sobre a política de gestão, controle e extermínio de pessoas definidas racialmente e lembra a participação da vereadora carioca na luta pelo desencarceramento
Na coluna desta semana, publicamos mais uma contribuição que tinha sido preparada para a mesa-redonda “Marielle, presente! 730 dias sem justiça!”, organizada pelo Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e que iria acontecer no dia 13 de março, mas teve que ser cancelada como medida para a prevenção do contágio do Covid-19.
No artigo, Emanuele (Manu) Freitas reflete sobre o encarceramento em massa da população negra, uma (necro)política sistêmica de gestão, controle e extermínio de corpos descartáveis definidos racialmente, e lembra a participação de Marielle na luta pelo desencarceramento. Manu Freitas é jornalista, fotógrafa, pesquisadora de direitos humanos, imagens e conflitos e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Marielle presente, hoje e sempre!
“Quem mandou matar Marielle não imaginava que ela se tornaria milhões de sementes. Seu corpo e sua vida foram interrompidas, suas lutas não”.
Por Manu Freitas
Já passaram dois anos da morte de Marielle Franco e Anderson Gomes, vítimas e símbolos da crise de segurança, da violência e da luta por justiça. Alguns tiros foram suficientes para ceifar a vida dos dois. Tentaram calar a voz de Marielle. Grande engano. Decidiram cortar uma rosa, mas não imaginavam que dela surgiria um jardim imenso e intenso de luta. Marielle presente, hoje e sempre!
Um crime político. Arquitetado, pensado e repensado para não deixar pistas. Um carro que sumiu após o crime, um mandante que nunca foi descoberto e uma cena política manchada de sangue. Não foi apenas uma vereadora da esquerda assassinada; mataram uma mulher, negra, LGBT e favelada que incomodava o sistema, as milícias e os políticos corruptos do Rio de Janeiro. No Brasil, corpos como o de Marielle são tidos como descartáveis. No país onde a violência e o preconceito são constantes, mata-se por achar que “não vai dar em nada”, justamente porque ninguém liga para uma vereadora do Rio de Janeiro cria do Complexo da Maré. Outro engano.
A imagem de Marielle incomodava. A presença e a fala dela na Câmara Municipal do Rio de Janeiro incomodavam. Assim como uma parcela da sociedade se incomoda ao ver uma mulher negra, LGBT e favelada chegar onde Marielle chegou. Onde nós, pesquisadores negros e pesquisadoras negras, chegamos. Temos direito à educação, à cidade, à saúde, mas não temos garantias desses direitos. Contrariamos estatísticas todos os dias. O Brasil tem cerca de 1407 estabelecimentos prisionais e neles estão, em sua maioria, jovens negros e negras. São 773.151 privados de liberdade no país. Nos anos 2000, essa população totalizava 200 mil indivíduos.
O nosso sistema prisional tem capacidade para 461.026 pessoas, porém temos quase o dobro desse número vivendo nas unidades prisionais brasileiras. A população negra representa 2/3 desses 773.151, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Vivemos um processo de encarceramento em massa, principalmente da população negra. Em 2000, a taxa de aprisionamento era de 135 a cada 100 mil habitantes; hoje, 20 anos depois, subiu para 335 a cada 100 mil habitantes. Somos o terceiro país que mais prende no mundo, perdemos apenas para os Estados Unidos e a China.
E nesses presídios são constantes as práticas de violação de direitos humanos, como tortura, tratamentos desumanos, pressões psicológicas e homicídio. Mas onde eu quero chegar com esses números? O que eles têm a ver com Marielle? Marielle apoiava a Frente Nacional pelo Desencarceramento, organização que tem o intuito de diminuir o encarceramento e a superlotação das prisões brasileiras. Em 2017 foi lançada a Frente Estadual pelo Desencarceramento no Rio de Janeiro, e o mandato de Marielle participou ativamente das reuniões se inserindo num grupo de trabalho que tratava do sistema socioeducativo prisional. E o que ela tinha a ver com a população carcerária?
Qual população é alvo do encarceramento? O povo negro. Povo que Marielle defendia e representava na Câmara Municipal dos Vereadores do Rio de Janeiro. Todos os indivíduos têm direitos, mas esses não são garantidos a todos. Como apontou Judith Butler em uma de suas obras, há, na sociedade em que vivemos, vidas precárias tidas como não merecedoras à existência. São milhões de indivíduos colocados nessa condição de não-humanidade, a qual foi estabelecida por uma sociedade que julga e fere os direitos dos cidadãos em condições de vulnerabilidade, com é o caso dos privados de liberdade. Como sobreviver se não lhes são garantidas condições de existência?
Marielle lutava por direitos, igualdade, garantias de sobrevivência dos jovens negros e negras, lutava a favor das populações esquecidas pela maioria dos governantes desse país. A Marielle, essa condição também foi negada. Afinal, ela é o corpo mais facilmente descartado por essa sociedade: mulher, negra, LGBT e favelada. Mas, “quem mandou matar Marielle não imaginava que ela se tornaria milhões de sementes. Seu corpo e sua vida foram interrompidas, suas lutas não” (frase encontrada no site Florescer por Marielle).
Por isso, hoje e todos os outros dias de nossas vidas temos o dever de lutar e não deixar que outras Marielles e Andersons sejam assassinados em via pública sem qualquer receio de punição. Esperamos justiça por tantos negros e negras que ainda são mortos apenas pela sua cor de pele. É preciso mudar, abalar e destruir as estruturas dessa política suja feita, em sua maioria dominante, por homens brancos, que ao invés de defender o povo o coloca na mira de seus próprios interesses. Que muitas outras Marielles possam ter força e oportunidade para abalar as estruturas desse país.
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Leia a coluna anterior: Feminismo negro e empoderamento
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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