A pensadora e educadora feminista negra bell hooks é a inspiração do texto da pesquisadora potiguar Beatriz Pires
Na coluna desta semana, Beatriz Pires dialoga com a pensadora e educadora feminista negra bell hooks (escrito em minúsculas, segundo a própria pensadora, para dar enfoque ao conteúdo da sua escrita e não à sua pessoa) para refletir sobre a língua como dispositivo de dominação – utilizado pelos colonizadores para impor aos povos escravizados seu universo de referência, produzindo subjetividades submissas pela aniquilação da memória, da cultura e da identidade encarnadas pelos idiomas nativos perdidos – e, ao mesmo tempo, como possível espaço de (re)criação de raízes e pertencimentos, que possibilita aos oprimidos apropriar-se da língua dos opressores, contorcendo-a e reconstruindo-a, para elaborar a partir dela uma cultura de resistência. Beatriz Pires é discente do curso de Comunicação Social – Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e pesquisadora do projeto Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom.
Língua de opressão e de resistência
Por Beatriz Pires
Ao que parece, não é necessário ter a experiência de longos anos de vida, nem o conhecimento de um pesquisador acadêmico, para entender que as palavras e a língua são dotadas de poder. Basta ouvir e sentir a força de dois “oxentes” calorosos que se encontram e se abraçam no Sudeste do Brasil a procura de melhores condições de vida, ou o “Deus te abençoe” carregado de proteção que sai da boca de uma mãe ao se despedir de seu filho às 7 horas da manhã.
Perceber o poder da língua não é nada complicado, é quase uma questão de intuição. Mas, ao contrário, ter uma percepção crítica sobre ela é difícil. Língua é identidade e cultura. Acalanta e transmite sensação de pertencimento. Mas língua também é instrumento de manutenção de poder. Língua pode ser matança e conquista.
“Como o desejo, a língua rebenta, se recusa a estar contida dentro de fronteiras. Fala a si mesma contra a nossa vontade, em palavras e pensamentos que invadem e até violam os espaços mais privados da mente e do corpo[1].” É com estas palavras que a teórica feminista bell hooks introduz o capítulo A língua – Ensinando novos mundos/novas palavras, do livro Ensinando a Transgredir – A Educação como Prática da Liberdade.
Em suas reflexões, hooks aborda de forma crítica o uso do inglês como língua padrão. Embora escreva de um lugar geograficamente distante do nosso, neste ponto nossas realidades se encontram. Não é incomum do lado de cá, no Nordeste do Brasil, nos depararmos com exigências acadêmicas que determinem normas não inclusivas. Para ela, o inglês padrão é a fala do exílio, a língua da conquista e da dominação.
Nos Estados Unidos, a língua inglesa funcionou como uma espécie de máscara para ocultar a perda de muitos idiomas. Sobre isso, a autora aponta nosso pouquíssimo conhecimento sobre como os africanos desalojados, escravizados ou livres que foram levados aos Estados Unidos se sentiram diante da perda da língua. O quão traumático pode ter sido assistir a perda de sentido da sua língua, pela força de uma cultura colonizadora? O quão sofrido foi ver pessoas iguais a si, com a mesma cor de pele e mesmas condições, mas sem língua comum para se comunicar? O terror vai muito além do medo. Reside também na angústia de se ouvir algo que não se pode compreender. Neste ponto, a negritude e a cor escura da pele se tornam o único espaço de formação de laços.
Por outro lado, ao passo que o inglês, naquele contexto, era a língua do opressor, ela também poderia ser adquirida como espaço de resistência. A ativista social destaca como deve ter sido feliz o momento em que os escravos perceberam que a língua dominante poderia funcionar como um espaço de formação de laços e que, a partir daí, poderia ser desenvolvida uma cultura de resistência: “Aprender o inglês, aprender a falar a língua estrangeira, foi um modo pelo qual os africanos escravizados começaram a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominação. De posse de uma língua comum, os negros puderam encontrar de novo um modo para construir a comunidade e um meio para criar a solidariedade política necessária para resistir[2]”.
Trazendo estas reflexões para atualidade, a percepção e visão crítica sobre a língua são indispensáveis quando se fala em fazer ciência e transmitir conhecimento: “O poder dessa fala não é simplesmente o de possibilitar a resistência à supremacia branca, mas também o de forjar um espaço para a produção cultural alternativa e para epistemologias alternativas – diferentes maneiras de pensar e saber que foram cruciais para a criação de uma visão de mundo contra-hegemônica[3]”.
Assim, que nossas produções científicas possam carregar (e carreguem), sem imparcialidade e cada vez mais, nossos traços, raízes e identidades. Que elas não se limitem a seguir a língua padrão a as normas da ABNT, e tornem-se íntimas. Que a língua seja tão importante quanto as ideias. Que encontremos formas de produzir conhecimentos científicos que atravessem os muros da universidade e cheguem no topo do morro. Sejamos desobedientes e toquemos uns aos outros através das palavras.
Aprendi com bell hooks e agora compartilho: “A mudança no modo de pensar sobre a língua e sobre como a usamos necessariamente altera o modo como sabemos e o que sabemos[4]”.
Notas:
[1] bell hooks, Ensinando a Transgredir – A Educação como Prática da Liberdade. São Paulo: Martins Fontes, 2013… p. 223.
[2] bell hooks, Op. Cit… p. 226.
[3] bell hooks, Op. Cit… p. 228.
[4] bell hooks, Op. Cit… p. 231.
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Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Antonino Condorelli
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