Instrução como um serviço (Parte II) Disruptiva

quarta-feira, 2 dezembro 2020

Acompanhem a conclusão desse exercício que propõe uma instrução superior maciçamente orientada à inovação

No episódio anterior, o corpo docente da Escola da Ilha fechou a porta para Mathias, por entender que conservadorismo tem a ver com “forma”, ou seja, fazer as coisas sempre do mesmo jeito, e não com “princípios”, o que significa manter o ato de aprender e ensinar constante, adaptando-se ao contexto. “Viver é adaptar-se; esse é o único princípio a ser conservado”, diz um aforismo nos antigos papiros da ilha.

À saída da reunião, Mathias esbarra no ancião mais respeitado da ilha, que o interpela: “Mathias, você já ouviu falar nos papiros que sobreviveram ao nosso último hecatombe?”. Mathias, surpreso com a abordagem, olha para o idoso e responde com duas perguntas: “Que papiros… que hecatombe?”.

Alex-Dan, “o sábio”, amante do conhecimento, é o guardião de escritos dos ilhéus. Quando muito jovem, uma catástrofe epidemiológica dizimou 90% da população. Como sobrevivente mais velho, tomou para si a missão de preservar a cultura. Fez isto coletando diários, escritos e livros antigos, dispondo-os em uma grande casa, uma espécie de prefeitura. Para atrair pessoas de forma a propagar seus conteúdos, transformou o ambiente em um local aconchegante, logo apelidado de Café da Ilha.

Alex-Dan, com a firmeza e serenidade que só os nonagenários possuem, fala a Mathias: “Processo certo; abordagem errada!”. O conjunto postura-força das palavras do homem, capazes de fazer tremer até rocha, faz Mathias esboçar a única reação possível: acompanhar o ancião até o Café. Tem início então a estruturação da InaaS (Instrução como um Serviço) e a concepção da Inhame Corporation.

Sobre a abordagem

No Café, Alex-Dan faz Mathias acompanhá-lo até os andares superiores, onde os escritos estão dispostos por tema. Alex-Dan recolhe dois deles: Como Fazer Amigos e Não Acabar em um Caldeirão e A Arte de Influenciar Ilhéus. Olha para o homem e avança um ensinamento: “Você tentou derrubar uma parede com um murro. E pior ainda: na frente de todos os pedreiros. O que esperava?”. Mathias cai em si: “Verdade, sábio. Mas como fazer então?”. O ancião prossegue: “Tire tijolo por tijolo, quando o mínimo de pedreiros estiver olhando, principalmente o chefe da obra”. A ficha de Mathias caiu. Saiu correndo e ouviu um grito atrás de si: “O café não foi de graça; vou botar na sua conta”. O cara não chegou aos 90 por altruísmo… Mathias entendeu que tinha de abordar aquela hegemonia por partes e em uma área neutra, longe da toca do leão. Não se ataca de frente uma estrutura tão bem estabelecida.

InaaS: Instruction as a Service

Em Cara, onde é que você tava?, exponho um modelo alternativo de instrução adotado pela Faculdade Brilhante. Trago o conceito pra cá, com adaptações, já que 06 meses pedem aprimoramento. Pra facilitar, fiz até um desenho.

InaaS: Instruction as a Service (Instrução como um Serviço).

Recursos principais:

    • AP30: Aulas online Padrão de trinta minutos, no estilo MOOC (Massive Open Online Course).
    • SV: Salas de Verificação e Validação do aprendizado (Em campo, espalhados pela cidade).
    • SP: Lab. de Práticas e Sínteses (FabLab, fábrica, empresa, escola, hospital etc.).
    • Showroom: interação com o Sistema Realidade (Mercado e Sociedade).

 

  • SD: Sala de Práticas Dialéticas (trabalhar a sustentabilidade em seu espectro amplo).

 

  • Fintech:  gerenciamento de recursos de participação acionária, fomento para inovação e bolsas.
  • Sintonizador: captação de necessidades e elaboração de scripts profissionais para resolvê-las.

Funcionamento. Os empreendedores cumpririam módulos teóricos com AP30 específicas. Feito isso, a plataforma sinalizaria quando estivessem prontos para validações e verificações teóricas nas SV. Os próprios alunos reservavam seus assentos nas SV e realizavam tudo presencialmente. Recebido o “ok” da plataforma, combinavam práticas nas SP com os respectivos tutores (professores, especialistas, empresários etc.) para execução dos trabalhos práticos, o que incluíam até a área da saúde, como cirurgias, por exemplo. Os aprovados nas aulas práticas, sob comando de um tutor da plataforma, eram direcionados ao Showroom, onde em contato com o Sistema Realidade seriam orientados a desenvolver P2S2 (Produtos, Processos, Serviços, Startups) de acordo apropriados. O Showroom era a arena em que os contratos aconteciam. As aulas online, salas de prática e salas de verificação eram bancadas pelos próprios empreendedores ou interessados, cujos valores eram trabalhados pela Fintech de modo a manter o sistema minimamente sustentável. É interessante ressaltar que no Showroom surgiam muitos novos modelos de negócio, dado ao choque de ideias que lá ocorriam. Muitas startups foram bancadas por investidores no Showroom, transformando-o em uma aceleradora de empresas.

As questões de cunho social eram trabalhadas continuamente nas SD, como sustentabilidade (Econômica, Social, Cultural e Ambiental), novas tendências – como a de Capitalismo Consciente -, e o impacto das tecnologias emergentes (“Uberização”, I.A., desemprego etc.). Todas operações eram controladas pelo HUB InaaS, com um adendo fundamental: não foi necessário o assentamento de um único tijolo. Os trunfos do sistema InaaS foram os seguintes:

  1. Utilizar todos os recursos-chave pré-existentes no Mercado, inclusive as universidades. 
  2. Trabalhar a Ciência com modelo de negócios orientado pela Inovação, e não o contrário, como sugerido em Ciência, tecnologia e inovação: ordem errada!.
  3. Ter uma Fintech própria, para gerenciar receitas, custos, distribuições e participações societárias.
  4. E o mais inteligente: não bater de frente em muros universitários, cujo modelo é firmemente estabelecido. Concentra-se unicamente na instrução maciça orientada à inovação.

Saltando o muro e criando a Inhame Corp.

Inebriado pelas palavras do velho homem, Mathias combina com Alex-Dan – agora com a função de sintonizador de necessidades e oportunidades da ilha -, encontros individuais com os docentes da escola no Café. Para um a um vai descrevendo suas ideias e de como precisa deles para capacitar pessoas nas novas habilidades. Consegue a adesão da metade. Sem intenções de ir de encontro à escola – e no contraturno das aulas -, utiliza espaços do Café para promover os encontros de instrução necessários. Remunera alguns docentes (no Café chamado de instrutores) com parte da produção. Alguns, mais ousados, preferem participação nos novos negócios, cujas expectativas são promissoras. Para as aulas práticas, monta laboratórios no Café e utilizava também roçados de simpatizantes.

Faz tudo isto em uma das mesas do Café, em forma de serviço, sem assentar um único tijolo, assim como também instala aí seu centro de gerenciamento de processos, pagamentos, transações contratuais e desenvolve os scripts de instrução prospectados por Alex-Dan, “o sintonizador”. Na mesa também gerencia aluguéis de roçados, armazéns, bolsas para quem precisasse etc. O volume de operações mostra-se tão intenso que Mathias subloca um cômodo para não prejudicar o ambiente charmoso do Café. É então erigida, no quartinho dos fundos, a Inhame Corporation, cuja sede, um ambiente de 2m x 3m, torna-se o local de maior densidade negocial da ilha. Em questão de alguns meses, nasce uma atividade altamente especializada dentro do “quartinho”, e uma de suas duas mesas recebe uma plaquinha onde pode-se ler Inhame Coin. Por trás dela vê-se um homem, com ligas contornando as mangas de uma camisa listrada impecavelmente passada, viseira, óculos redondos e uma dúzia de ábacos nos quais cálculos complexos são realizados. Nenhum cérebro poderia ocupar aquele lugar senão o do mancebo João-Mon, o “calculador humano”, como era conhecido na ilha.       

Com o passar do tempo, acontece um efeito inesperado: os jovens ilhéus, admitindo o sucesso dos que aderiram ao projeto de Mathias, frequentavam cada vez menos a Escola da Ilha, promovendo seu enfraquecimento. Mathias contornou o muro utilizando a enxada, sem promover um único arranhão nele. O decano da ilha convoca uma reunião urgente.

A facada nas costas

Palavras do decano: “Exceções podem ser avaliadas apenas em caso de catástrofes”. Para ele, a morte iminente da escola era uma dessas exceções. Em menos de um ano, o Conselho reúne-se sob a pauta: “O esvaziamento da Escola da Ilha: o que fazer?”. O decano começa expondo toda a história recente da ilha, contaminada pelo forasteiro, chegando ao ponto crucial: a queda de atratividade da escola na qual, em suas palavras, “coisas sérias já foram lá tratadas”, em prol da ganância que atraía cada vez mais adeptos para lucros mais rápidos. E o que é pior, sob o seu nariz. Continuou: “Fui esfaqueado pelas costas, dentro de minha casa, por um velho amigo, com o qual dividia espaços filosóficos”. Ah, acho que esqueci de escrever, mas aquela casa imponente, com ares de prefeitura, era também a sede da Escola da Ilha, na qual o decano havia cedido, outrora, cômodos para abrigar raríssimos conhecimentos que um homem trazia consigo, para ele há muito perdidos. Quem, senão uma escola, aceitaria de presente uma cultura? O Café da Ilha estava abrigado na escola. O destino não poderia ser mais cruel… Ou providente! Decano e ancião entreolham-se de forma intensa, gelada e infinita, que faria Einstein repensar o conceito de tempo. Alex-Dan, tendo sido invocado, pede a palavra, a qual é prontamente negada pelo decano para sentenciar: “Jogo a toalha. A Escola da Ilha está fechada!”. E se retira. 

Você fica com a Instrução. Nós com a Educação!

Os maiores líderes da ilha, antes amigos, agora magoados e de lados opostos. Mathias sente-se obrigado a retribuir. Tendo lido o livro, vai ter com o ancião e propõe uma abordagem. Ambos vão ao decano e convidam-no a conhecer a Inhame Corp. por dentro. Este, resignado, aceita e vai. Todo o processo lhe é explicado. O decano, como bom professor, aponta falhas de procedimento em muitas etapas de processos, quando Mathias pede sugestões de melhoria. E aí ambos, quase que em uníssono, gritam: falta o método científico! (forcei a barra aqui, mas ficou bonito). Então, uma centelha faz explodir o cérebro da velha coruja: podemos nos ajudar aqui, ali e alhures! Conhecemos o método científico. Vocês materializam a Ciência, desvendando intrincados mecanismos ora imperceptíveis pela teoria, sem a preocupação do porquê acontecem. Não têm tempo para tais conjecturas; nós mergulhamos nos “por quês” de tudo, e muitas vezes nos perdemos em divagações, pois falta-nos um Norte. Podemos fazer um trato: juntar nossa força docente para vasculhar processos da Inhame Corp, fazer simulações, conjecturar, refinar técnicas e, junto com os alunos, apresentar aos ilhéus, medir seus impactos e propor novos caminhos, possibilidades, as quais serão testadas sempre pela Inhame Corp. O que acha, Mathias? Este, com uma lágrima no canto do olhos, vaticina: “Serei seu aluno mais aplicado”!

Finalizando… Ou melhor, começando!

Com o auxílio dos docentes, a Inhame Corp. decuplicou. Sendo a Ciência continuamente “cutucada” pelos arroubos da Inovação, foram desenvolvidas técnicas suficientes para que o nome da escola passasse a “Escola de Estudos Superiores e Aplicados da Ilha”. O decano e Alex-Dan fizeram as pazes, e uma canção foi acrescida aos papiros da ilha:

“Em terra onde se cavava com a mão,

E não havia inovação,

Ela, a Enxada, foi a salvação”.

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Leia a edição anterior: Instrução como um serviço (Parte I)

Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

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