Ig Nobel, a ciência do absurdo? Coluna do Jucá

quinta-feira, 20 setembro 2018
Os Prêmios do Ig Nobel são concedidos aos pesquisadores cujas investigações fazem as pessoas rirem e depois pensarem. Foto Google

A estrada da ciência é também pavimentada pelo inusitado, o quase inimaginável

Não é incomum associarmos as fantásticas descobertas científicas a lampejos de genialidade. Alguns desses achados mudaram os rumos da humanidade, bem como a forma como encaramos o mundo, inclusive. No entanto, se considerarmos a natureza da produção do conhecimento científico, perceberemos que o estereótipo do cientista genial é não somente limitante, como também equivocado. Talvez, seja mais adequado aproximarmos, metaforicamente, suas qualidades laborais a de um trabalhador comum cuja rotina poderia ser traduzida nos versos da belíssima canção do saudoso Gonzaguinha, “E vamos à luta”, quando diz: “(…) E segura a batida da vida o ano inteiro, aquele que sabe o sufoco de um jogo tão duro, e apesar dos pesares (…)”. O trecho da música parece-me mais real, representativo e fidedigno da realidade científica!

A história da descoberta da estrutura do DNA é emblemática. Foi necessário muito trabalho, aliás, décadas de trabalho duro, até Watson e Crick vislumbrarem, graças às imagens de Rosalind Franklin, a dupla hélice. Para tanto, foi necessário esperar pelo desenvolvimento da química de nucleotídeos e aminoácidos, do aperfeiçoamento de técnicas analíticas (difração de raios X), da participação de inúmeros personagens (Oswald Avery, MacLeod, McCartey, F. Griffith, Paul Levene, T. Casperson, Willian Astbury, John Bernal, John Kendrew, Max Perutz e tantos outros), muitos dos quais ilustres (Erwin Schrodinger e Linus Pauling).

“The Stinker”, o mascote oficial dos Prêmios Ig Nobel.

Na última quinta-feira (13/09), foi celebrada no Teatro Sanders, na Universidade de Harvard, Cambridge, Massachusetts, EUA, a 28ª Cerimônia Anual Ig Nobel. Os Prêmios do Ig Nobel são concedidos aos pesquisadores cujas investigações fazem as pessoas rirem e depois pensarem, ou seja, destinam-se a celebrar o inusitado e o quase inimaginável. A escolha dos ganhadores, a cerimônia e os prêmios concedidos a cada laureado — uma cédula de dez trilhões de dólares do Zimbábue, cujo valor é irrisório, e que são entregues fisicamente por autênticos ganhadores do Prêmio Nobel — são feitos pela revista de humor cientifico Annals of Improbable Research. De acordo com os organizadores do evento, o comitê do Ig Nobel é formado por um público diverso, o qual inclui ganhadores do Prêmio Nobel e do Ig Nobel, escritores de ciência, atletas, funcionários públicos, cidadãos ilustres, e por tradição, no último dia de deliberações, escolhe-se até um transeunte aleatório para ajudar a tomar a decisão.

O leitor pode então se questionar: qual seria, então, o objetivo da premiação? Segundo os organizadores, espera-se estimular a curiosidade das pessoas, ao levantar a seguinte questão: “como você decide o que é importante e o que não é, e o que é real e o que não é — na ciência e em qualquer outro lugar? ”. Parece bem pertinente esse tipo de questão. A prova disso é que o comitê do Ig Nobel não faz comentários sobre quais conquistas vencedoras dos prêmios podem ser consideradas “boas” e/ou “ruins”, ou ainda quais podem ser consideradas “importantes” ou “triviais”. Como no caso de um artigo científico, o crivo maior fica por conta de toda a comunidade científica, e não apenas dos pares.

28º Prêmio Anual Ig Nobel, cujo tema da cerimônia foi o coração.

Dentre os autores principais que foram premiados na 28ª Cerimônia Anual Ig Nobel, menciono aqui dois trabalhos. O primeiro foi atribuído a Tomas Persson, premiado na área de Antropologia. Persson, juntamente com os demais coautores, ao estudarem as interações entre chimpanzés e visitantes de um zoológico na Suécia, mostraram que as duas espécies imitavam uma a outra, a uma taxa semelhante, correspondendo a quase 10% de todas as ações produzidas. Os dados desse estudo foram publicados na revista científica Primates, em janeiro desse ano (Spontaneous Cross-Species Imitation in Interaction Between Chimpanzees and Zoo Visitors). O outro prêmio contemplou a categoria Prêmio da Paz. Neste, Francisco Alonso e colaboradores, em 2017, publicaram no Journal of Sociology and Anthropology, um estudo no qual mediram a frequência, a motivação e os efeitos de gritos e xingamentos ao dirigir um automóvel (Shouting and Cursing While Driving: Frequency, Reasons, Perceived Risk and Punishment).

Parece-me, portanto, que não há nada absurdo nas pesquisas ganhadoras do Ig Nobel, ou até mesmo daquelas elegíveis à premiação. Ao contrário, esses estudos têm o poderoso papel de estimular, chamar a atenção, bem como despertar o interesse das pessoas pela ciência. Além de tudo isso, têm-se aí uma poderosa ferramenta de popularização e divulgação científica. Por fim, se há aberração no campo científico, certamente ela reside na gestão pública dos recursos que fomentam a educação, ciência e tecnologia. Há negligência com a nossa história natural, humana e cultural e não nas ideias ou nas pessoas que produzem conhecimento. Absurdo mesmo é deixá-lo esvair-se até virar cinzas, como virou.

Referências

Shouting and Cursing While Driving: Frequency, Reasons, Perceived Risk and Punishment. Francisco Alonso et al. Journal of Sociology and Anthropology, vol. 1, no. 12017, pp. 1-7.

Spontaneous cross-species imitation in interactions between chimpanzees and zoo visitors. Tomas Persson et al. Primates, Vol 59, Nº 1, pp. 19-29.

The 28th First Annual Ig® Nobel Prize Ceremony & Lectures. https://www.improbable.com/ig/2018/

A Coluna do Jucá é atualizada às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe, curta. Use a hashtag #ColunadoJuca. Estamos no Facebook (nossaciencia), no Instagram (nossaciencia), no Twitter (nossaciencia).

Leia o texto anterior: Um olhar para a realidade periférica

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Site desenvolvido pela Interativa Digital