Autores-Editores e seus selos editoriais no Rio Grande do Norte
(Cellina Muniz)
Para quem se inscreve, como pesquisador/a da linguagem, no que chamamos de perspectiva discursiva (e são muitas as vertentes), o conceito de ethos tem uma aplicação bastante prática.
O conceito remonta à Retórica de Aristóteles, na qual o filósofo grego, expoente do pensamento analítico ocidental, propõe o célebre triângulo formado pelos componentes básicos de toda e qualquer atividade oratória: ethos, pathos e logos: um orador, que não só discursa como apresenta também uma imagem de si; um auditório, o público-alvo, quem se pretende persuadir e despertar sua paixão; e o discurso propriamente dito, com o uso de suas muitas estratégias retóricas.
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A imagem de si que um enunciador “ostenta” ou “sugere”, portanto, tem valor argumentativo, mesmo que seus enunciados não tenham, a princípio, o propósito de defender uma ideia ou opinião. E esse é um aspecto que analistas de discurso da atualidade consideram ao trabalhar com o conceito de ethos discursivo.
O professor e pesquisador da Universidade Paris-Sorbonne IV, Dominique Maingueneau, é um exemplo, com vários artigos e ensaios a respeito. No livro Variações sobre o ethos (com tradução de Marcos Marcionilo pela Parábola Editorial, 2020), Maingueneau aborda o caso do chamado ethos editorial, o que particularmente interessa a mim e às minhas pesquisas.
Para compreender o que seja ethos editorial, uma outra noção se faz fundamental: o agenciamento, compreendido como conjunto de atividades (exercidas um pouco “na sombra”) implicadas na organização de uma cena enunciativa (o “aqui e agora” de um enunciado), o que pode envolver várias categorias de profissionais (Maingueneau, 2020, p. 143). Enquanto a cenografia está ligada à encenação propriamente apresentada na enunciação, o “agenciamento restringe de maneira mais ou menos forte as cenografias que podem ser desenvolvidas a partir dele”:
Sentar um locutor atrás de uma escrivaninha diante dos telespectadores é um agenciamento que favorece uma cenografia, logo, um ethos de tipo didático (Maingueneau, 2020, p. 142).
Já que, então, diferentes agentes podem ser envolvidos em uma enunciação, temos então que o ethos não se limita apenas a uma instituição e/ou uma tradição, ou ao gênero discursivo em que se enuncia (uma carta pessoal implica uma imagem de alguém que conta com maior familiaridade e intimidade, enquanto um relatório técnico supõe uma imagem de alguém especialista que prima pela objetividade, por exemplo), ou que se restringe ao próprio enunciador (o locutor ou autor): o ethos pode implicar o conjunto de mediadores menos visíveis, que poderíamos chamar de “agenciadores” (Maingueneau, 2020, p. 144).
Uma editora ou selo editorial (intencionalmente ou não, pouco importa) constrói uma imagem de si enquanto voz enunciativa (um sujeito que, como entidade discursiva, não se reduz necessariamente a um único indivíduo). Essa imagem se constrói a partir de “agenciamentos” diversos, oriundos não só da figura do editor como também por parte dos mediadores envolvidos no todo do processo: autores, tradutores, revisores, diagramadores, ilustradores etc.
Elementos diversos, portanto, funcionam como marcas e pistas para a projeção de um ethos editorial: o próprio título e/ou subtítulos do selo e de suas coleções já funcionam como indicadores, mas há também elementos de ordem não-verbal, como a imagem prévia dos autores publicados (publicar Charles Bukowski não é o mesmo que publicar Augusto Cury), bem como estilos, cores e fontes tipográficas utilizadas (nas logomarcas, diagramações e ilustrações, por exemplo).
Já faz um tempo que venho me dedicando a estudar as práticas discursivas implicadas nos empreendimentos de autores-editores do Rio Grande do Norte, ou seja, escritores, poetas, jornalistas que decidiram criar seus próprios selos editoriais. Em Natal, temos vários casos, para nossa sorte, dos quais destaco alguns: Flor do Sal, Sol Negro, Munganga, Z Editora, Caravela Selo Cultural, Insurgências Poéticas, Una, Escribas, dentre outros. E, embora as generalizações sejam um grande perigo contra o pensamento crítico, atrevo-me a sumarizar alguns aspectos gerais observados no ethos editorial desses autores-editores:
Como afirmei antes, são aspectos gerais e de modo algum esses sujeitos se reduzem a eles. O que importa destacar é que por meio dessa imagem geral, os autores-editores nos convencem de que, existindo e atuando num país e estado onde pouco se lê (em termos proporcionais à população), são mesmo heróis da resistência.
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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
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