Heróis da resistência Linguaruda

segunda-feira, 5 maio 2025
Com equipes pequenas de trabalho nas quais os laços profissionais se entrelaçam aos afetivos, autores-editores lançam e fazem circular seus produtos em eventos pontuais. (Foto: Divulgação)

Autores-Editores e seus selos editoriais no Rio Grande do Norte

(Cellina Muniz)

Para quem se inscreve, como pesquisador/a da linguagem, no que chamamos de perspectiva discursiva (e são muitas as vertentes), o conceito de ethos tem uma aplicação bastante prática.

O conceito remonta à Retórica de Aristóteles, na qual o filósofo grego, expoente do pensamento analítico ocidental, propõe o célebre triângulo formado pelos componentes básicos de toda e qualquer atividade oratória: ethos, pathos e logos: um orador, que não só discursa como apresenta também uma imagem de si; um auditório, o público-alvo, quem se pretende persuadir e despertar sua paixão; e o discurso propriamente dito, com o uso de suas muitas estratégias retóricas.

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A imagem de si que um enunciador “ostenta” ou “sugere”, portanto, tem valor argumentativo, mesmo que seus enunciados não tenham, a princípio, o propósito de defender uma ideia ou opinião. E esse é um aspecto que analistas de discurso da atualidade consideram ao trabalhar com o conceito de ethos discursivo.

Ethos editorial

O professor e pesquisador da Universidade Paris-Sorbonne IV, Dominique Maingueneau, é um exemplo, com vários artigos e ensaios a respeito. No livro Variações sobre o ethos (com tradução de Marcos Marcionilo pela Parábola Editorial, 2020), Maingueneau aborda o caso do chamado ethos editorial, o que particularmente interessa a mim e às minhas pesquisas.

Para compreender o que seja ethos editorial, uma outra noção se faz fundamental: o agenciamento, compreendido como conjunto de atividades (exercidas um pouco “na sombra”) implicadas na organização de uma cena enunciativa (o “aqui e agora” de um enunciado), o que pode envolver várias categorias de profissionais (Maingueneau, 2020, p. 143). Enquanto a cenografia está ligada à encenação propriamente apresentada na enunciação, o “agenciamento restringe de maneira mais ou menos forte as cenografias que podem ser desenvolvidas a partir dele”:

Sentar um locutor atrás de uma escrivaninha diante dos telespectadores é um agenciamento que favorece uma cenografia, logo, um ethos de tipo didático (Maingueneau, 2020, p. 142).

Já que, então, diferentes agentes podem ser envolvidos em uma enunciação, temos então que o ethos não se limita apenas a uma instituição e/ou uma tradição, ou ao gênero discursivo em que se enuncia (uma carta pessoal implica uma imagem de alguém que conta com maior familiaridade e intimidade, enquanto um relatório técnico supõe uma imagem de alguém especialista que prima pela objetividade, por exemplo), ou que se restringe ao próprio enunciador (o locutor ou autor): o ethos pode implicar o conjunto de mediadores menos visíveis, que poderíamos chamar de “agenciadores” (Maingueneau, 2020, p. 144).

Marcas e pistas

Uma editora ou selo editorial (intencionalmente ou não, pouco importa) constrói uma imagem de si enquanto voz enunciativa (um sujeito que, como entidade discursiva, não se reduz necessariamente a um único indivíduo). Essa imagem se constrói a partir de “agenciamentos” diversos, oriundos não só da figura do editor como também por parte dos mediadores envolvidos no todo do processo: autores, tradutores, revisores, diagramadores, ilustradores etc.

Elementos diversos, portanto, funcionam como marcas e pistas para a projeção de um ethos editorial: o próprio título e/ou subtítulos do selo e de suas coleções já funcionam como indicadores, mas há também elementos de ordem não-verbal, como a imagem prévia dos autores publicados (publicar Charles Bukowski não é o mesmo que publicar Augusto Cury), bem como estilos, cores e fontes tipográficas utilizadas (nas logomarcas, diagramações e ilustrações, por exemplo).

Já faz um tempo que venho me dedicando a estudar as práticas discursivas implicadas nos empreendimentos de autores-editores do Rio Grande do Norte, ou seja, escritores, poetas, jornalistas que decidiram criar seus próprios selos editoriais. Em Natal, temos vários casos, para nossa sorte, dos quais destaco alguns: Flor do Sal, Sol Negro, Munganga, Z Editora, Caravela Selo Cultural, Insurgências Poéticas, Una, Escribas, dentre outros. E, embora as generalizações sejam um grande perigo contra o pensamento crítico, atrevo-me a sumarizar alguns aspectos gerais observados no ethos editorial desses autores-editores:

  • Todos implicam autopublicação, mas não se restringem a ela em seus catálogos;
  • Alguns já estão há bastante tempo na “labuta”, outros são mais recentes no “mercado” local;
  • Contam com equipes pequenas de trabalho, em que os laços profissionais se entrelaçam a laços afetivos;
  • Oscilam entre um trabalho editorial mais profissional (têm ISBN e ficha catalográfica, são impressos em gráficas profissionais, por exemplo) e o mais artesanal (não cadastram seus produtos na CBL, fazem costura à mão e utilizam impressoras caseiras, por exemplo);
  • Fazem pequenas tiragens;
  • Lançam e fazem circular seus produtos em eventos pontuais, com suas redes particulares de relações;
  • Não estão, em sua maioria, nas grandes redes de livraria, mas sim em livrarias e sebos da cidade.

Como afirmei antes, são aspectos gerais e de modo algum esses sujeitos se reduzem a eles. O que importa destacar é que por meio dessa imagem geral, os autores-editores nos convencem de que, existindo e atuando num país e estado onde pouco se lê (em termos proporcionais à população), são mesmo heróis da resistência.

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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

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