Genes, desenvolvimento cerebral e racismo pós genômico Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 22 maio 2020
Crédito: Angie Wang

Como o estudo de alelos de genes cerebrais são deturpados para contar histórias racistas

Caros, após uma breve interrupção a coluna Biologia do Envolvimento está de volta! Como estamos em tempos difíceis, em que a ciência tem sua credibilidade sob ataque e ao mesmo se faz super necessária para enfrentarmos a atual crise sanitária, vou publicar nas próximas semanas textos que combatam o negacionismo científico e o obscurantismo. Espero que gostem! Abraços!

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Nós seres humanos estamos em constante evolução, sobre pressões seletivas mais diversas. Uma das demonstrações mais bonitas desta pressão seletiva é aquela que o protozoário da malária exerce sobre populações de áreas endêmicas. Este protozoário, o Plasmodium, entra em nossas hemácias, as células que distribuem oxigênio pelo corpo, as destrói, e pode nos levar à morte. Se você for portador de uma mutação no gene da ß-globina (uma substituição de uma adenina por uma timina) o Plasmodium não se dá tão bem nas suas hemácias, você fica mais resistente. Só que ter esse alelo, o HbS, também pode ser ruim. Se você tiver dois dele você vai ter hemácias malformadas, em forma de foice e mais frágeis, causando um quadro chamado anemia falciforme. Assim, nas áreas sob pressão constante de surtos de malária, é vantajoso ser heterozigoto, portador de um alelo HbS apenas, pois será mais resistente ao Plasmodium e ainda tem um alelo funcional de b-globina para ajudar a fazer hemácias. Em qualquer outro lugar do mundo não há vantagem nenhuma em ter o alelo HbS, isso porque ele causa anemia. Se compararmos o mapa das regiões africanas endêmicas para malária com o das frequências do alelo HbS, vemos que os dois tem uma alta correlação espacial. Assim, estes dados sugerem que o ambiente gerou uma seleção positiva que aumentou a frequência do alelo HbS especificamente nestas áreas, diversas vezes.

Mapas mostram a distribuição de Plasmodium falciparum e HbS na África. Crédito: Williams, 2006

Uma observação importante sobre os seres humanos portadores de HbS é que eles não possuem todos a mesma cor de pele. Existem portadores de HbS com todas as cores de pele que você já tenha visto. Esta deveria ser uma observação lógica, uma vez que a b-globina não tem qualquer relação com a cor da pele. Genes e alelos segregam independentemente por populações. Mas a verdade é que a busca por diferenças biológicas entre raças está muito viva nos estudos modernos sobre nossos genes e alelos.

A pseudociência chamada eugenia persegue há muitos anos a demonstração de que diferentes raças possuem capacidades cognitivas inatas distintas. Tudo começou com a medida enviesada de crânios, passou pela aplicação de testes de QI (escrevi sobre a motivação eugenista que levou aos primeiros testes de QI aqui (O estudo do cérebro de assassinos como ferramenta de eugenia) e, mais recentemente, veio parar nos estudos sobre genes envolvidos no desenvolvimento cerebral.

Bruce Lahn

Em 2005, o laboratório de Bruce Lahn, publicou dois artigos na prestigiosa revista Science em que demonstrou que certos alelos de dois genes importantes para o desenvolvimento do cérebro ocorrem em maior frequência em seres humanos da Europa, Ásia e norte da África. Estes genes, ASPM e microcephalin, quando sofrem mutações que eliminam a função da proteína que codificam, levam à microcefalia. Mas quando eles são funcionais, podem ainda vir na forma de diferentes alelos, com diferenças em sequência entre si. Até aí tudo bem, este enriquecimento de alelos em algumas regiões acontece mesmo, por diversas razões (como a dispersão de alelos em populações pequenas). Para mostrar que aconteceu seleção positiva, aquele que lança a hipótese tem também que mostrar qual foi a pressão seletiva sobre esse alelo. Qual seria a malária dos genes de desenvolvimento de cérebro? Pois bem, para Lahn e seus colaboradores, aqueles alelos que curiosamente possuem baixa frequência em populações subsaarianas, foram enriquecidos na saída dos seres humanos em direção à Europa e Ásia (aproximadamente 40.000 anos, idade estimada do alelo de microcephalin) e no alvorecer de grandes civilizações da Eurásia (aproximadamente 5000 anos atrás, idade estimada do alelo de ASPM). Para Lahn, a pressão seletiva sobre esses genes vem da inteligência, e este ganho em características neurais é menos frequente em populações africanas.

Obviamente, a história contada por Lahn era completamente furada. Timpson e colaboradores resolveram então realizar testes cognitivos e medidas do perímetro cefálico em 9000 crianças para testar se os tais alelos mágicos, mais frequentes na Eurásia, as conferia qualquer diferença. A resposta foi não (e eles não foram os únicos a tentar). Assim, rapidamente o argumento de que haveria uma pressão seletiva sobre estes alelos, uma vez que eles aumentavam a inteligência das pessoas, caiu por terra. E não parou por aí.

Distribuição dos alelos de microcephalin encontrada por Lahn e colaboradores.

Outro argumento de Lahn e colaboradores para justificar a pressão positiva sobre os alelos foi que, após realizar diversas simulações computacionais de história demográfica, seria difícil chegar às frequências que eles encontraram sem ter havido seleção. Porém, ao invés de se basear em simulações de computador para realizar suas comparações, eles poderiam simplesmente comparar a variabilidade encontrada nos genes ASPM e microcephalin com outras regiões genômicas que não estejam sob pressão seletiva. Foi o que fizeram Yu e colaboradores. E pra falta de surpresa de todos, não encontraram nenhuma diferença. Assim, a história de Lahn parecia bonita no mundo simulado, mas não resistiu à comparação com a vida real.

Bom caros, eu acho impressionante que estes artigos tenham resistido à revisão por pares e tenham sido publicados na revista que está entre as mais difíceis de publicar. Além disso, eles ganharam um artigo comentário elogioso na mesma edição e o falso achado foi eleito pela mesma revista Science um dos maiores avanços científicos de 2005. Até hoje, eles não foram retirados pela revista. Bruce Lahn, ao dar uma entrevista recente para a jornalista de ciências Angela Saini afirmou: “(Ainda estou) aberto à possibilidade de que podem haver diferenças genéticas sobra a inteligência entre populações modernas, assim como devem haver diferenças em outras características biológicas entre populações modernas como medidas corporais, pigmentação, suscetibilidade à doenças e adaptações à dieta.” Assim, mesmo frente a todos os dados, Lahn, um renomado cientista, se agarra a sua hipótese preconceituosa.

Muitos tentaram encontrar genótipos relacionados à inteligência. O que podemos concluir é que a inteligência é uma característica que não está ligada a poucos genes. É óbvio que ser inteligente nos conferiu vantagens adaptativas. Mas esta pressão ocorreu e ocorre sobre toda a espécie. Estamos em tempos de negacionismo à ciência e o mau-uso da mesma deve sofrer um crescente. Devemos então estar sempre alerta para que episódios como este não se repitam.

Referências:

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Leia o texto anterior: Os sobrevivente do holocausto nuclear

Eduardo Sequerra

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