Filósofa reflete sobre o apagamento do pensamento produzido por mulheres do cânone filosófico e das grades curriculares dos cursos superiores
Por Maristela de Oliveira Meira e Adriana Maria de Abreu Barbosa
No que diz respeito a Filosofia, qual o lugar do gênero feminino ao longo da tradição filosófica? O pensamento filosófico feito por mulheres é contemplado nas grades curriculares do curso superior de Filosofia nas universidades públicas da Bahia? Essas perguntas norteiam essa pesquisa que está em andamento no Programa de Pós-Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagem (PPGCEL) na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Para respondê-las partimos da categoria gênero e suas interfaces com a discussão dos termos mulher, homem, feminino e masculino, perspectivada pelos estudos feministas em Joan Scott, Simone Beauvoir, Heleieth Saffioti, Angela Davis e Lélia Gonzalez, dentre outras. Nesse sentido, selecionamos seis universidade baianas para que, por meio do plano de curso da disciplina História da Filosofia Contemporânea, pudéssemos verificar a presença das filósofas como indicação de estudo obrigatório.
As universidade selecionadas foram: a Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), a Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), e a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
Uma vez que as circunstâncias sociais impediram a participação e valorização da filosofia feita por mulheres ao longo da história da Filosofia, atualmente as mulheres vem conseguindo quebrar essas barreiras que nos impediam de existir no espaço público. Daí a justificativa da escolha da disciplina História da Filosofia Contemporânea, essa parte da filosofia que se debruça na investigação das formas de se pensar a existência humana em seu curso atual.
Gênero é a categoria de análise que possibilita o estudo da construção histórico e cultural dos papeis sociais assumidos por homens e mulheres em suas relações sociais (SCOTT, 1989). O gênero – categoria social para pensar as relações de poder desigualmente constituídas – só aparece no discurso moderno, elaborado no seio das lutas feministas. Comumente, a palavra gênero é confundida com o termo sexo, o que compromete necessariamente a própria utilização do gênero como categoria que, para além das questões biológicas, permite verificarmos as assimetrias estipuladas para a relação binária homem e mulher (CARVALHO, RABAY, 2015). Para além dessa relação binária, Scott teoriza a categoria de análise gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (1989, p. 21). Sexo, nesta concepção, é uma categoria biológica, que atribui características femininas ou masculinas ao indivíduo. Gênero se refere aos sexos socialmente construídos que dá aval para estabelecer as relações hierárquicas, nas quais o sexo masculino aparece sempre em vantagem. Os movimentos de mulheres colocam em questão a construção do sexo social que justifica e naturaliza comportamentos específicos para mulheres e homens. Esses comportamentos são reforçados desde o nascimento e estão pulverizados na sociedade por meio dos processos diversos de constituição do indivíduo. Não nascemos homem ou mulher; nos “tornamos”, como dizia Beauvoir, e esse “tornar-se” depende das demandas culturais e sociais de cada momento histórico e são produzidos e reproduzidos pelos mais diversos discursos presentes na sociedade.
Segundo Pacheco “os discursos dos filósofos influenciaram diretamente o posicionamento das mulheres na filosofia, deixando-as nas margens e no ocultamento” (2015, p. 17). Logo, “não só é notória a invisibilidade das mulheres na Filosofia, como também nos espaços acadêmicos, sendo raras as professoras e alunas nesse meio” (PACHECO, 2015, p. 22). Esse estado de coisas na “filosofia, essa “disciplina recalcitrante” que dificilmente se abre à inovação” (FERREIRA, 2001, p. 62), só começou a ser modificado no século XX, a partir dos anos sessenta com as lutas dos movimentos feministas, sobretudo nos EUA e países de língua inglesa, que levaram ao incremento dos Women Studies ou Gender Studies, incluindo-os nos currículos universitários e nos projetos de investigação.
Para Ferreira, há no mínimo três mudanças que podem ser observadas na relação Filosofia e mulheres. A primeira mudança está na nova maneira de analisar o pensamento dos filósofos, o que permite uma visão diferente de suas teses, no que diz respeito à consistência interna das mesmas; a segunda mudança busca apresentar as filósofas ocultadas ao longo da história da Filosofia, além de mostrar como as suas teorias impactaram o momento em que elas viveram; a terceira mudança está no próprio ato de filosofar, os temas que ao longo da história do pensamento ocidental foram menosprezados por estarem ligados a vivência feminina, agora ganham importância e são estudados como problemas próprios da filosofia. Temas como “o nascimento, a relação maternal, o cuidado com os outros, o modo feminino de fazer ética, epistemologia, ontologia, lógica” (FERREIRA, 2001, p. 63) agora são redescobertos como temas portadores de potencialidades filosóficas.
Visando a inserção da Filosofia produzida por mulheres na grade curricular do curso superior de Filosofia, participo da ideia proposta por Lopes (2006) de que o Estado não é o único responsável pela centralidade da elaboração curricular, mas que as entidades de movimentos sociais organizados podem e devem pressionar de forma a garantir a inserção nos currículos educacionais, das demandas pertinentes a cada setor da sociedade civil. Afinal currículo é espaço de poder e de construção de identidades. Entretanto, nossa pesquisa aponta que ainda não há visibilidade para filosofia produzida por mulheres nos cursos de Filosofia nas universidades públicas baianas. Por meio do plano de curso da disciplina História da Filosofia Contemporânea foi possível verificar que, embora haja a menção de que o objetivo da disciplina é trabalhar com a filosofia produzida na atualidade, nas referências bibliográficas não foi possível identificar nem uma filósofa. Esse projeto tem como objetivo geral contribuir para que essa discussão seja mantida de modo a pensar a reconstrução de um currículo em Filosofia mais justo e aberto às diferenças, sejam elas de ordem racial, de classe ou de gênero.
* Maristela de Oliveira Meira é graduada em Licenciatura Plena em Filosofia e mestranda no Programa de Pós Graduação em Letras: cultura, educação e linguagem pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), cuja pesquisa é orientada pela Dra. Adriana Maria de Abreu Barbosa. Maristela, ou Marie como é conhecida por seus pares, é descendente indígena, primeira da família a conquistar o diploma de ensino superior, quebrando o que era “normal” para toda uma geração de trabalhadores rurais e de mulheres que foram forçadas a trabalhar como doméstica para conseguir sustentar seus filhos e filhas. Vinculada a corrente do Feminismo Negro, atualmente vem desenvolvendo um projeto de valorização e conscientização do ser negra e negra na periferia da cidade de Vitória da Conquista, estado da Bahia. Contato: marie.meira@hotmail.com
** Adriana Maria de Abreu Barbosa é doutora em Semiologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professora titular de Literatura da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), e professora do Programa de Pós Graduação em Letras: Cultura, Educação e Linguagem (PPGCEL).
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“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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