A Universidade, como centro produtor de conhecimento, precisa buscar soluções para as desigualdades sociais
Diversos tipos de fome passaram a ser subjetivados com suas licenças poéticas: a fome de justiça, de poder, de sabedoria, entre tantas outras. No entanto, nenhuma das formas abstratas supera a pior delas, que é a fome em sua essência. Todos já provaram da fome quando fizeram uma dieta ou perderam uma refeição. Esta fome intencional, no entanto, não dói.
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A fome que destrói a dignidade humana é aquela em que se dorme sem a perspectiva de uma única refeição e se acorda na mesma incerteza de um prato de comida. Uma criança que não se alimenta não tem sonhos, não tem futuro. Com isso, a marginalidade e as drogas atraem, aprisionam e matam. E assim se fundamenta uma sociedade desigual, ao ponto de considerar tabus ao tratar do assunto.
Quem diz isso não sou eu, mas sim Josué de Castro, em Geografia da Fome: “Quais são os fatores ocultos desta verdadeira conspiração de silêncio em torno da fome? Será por simples obra do acaso que o tema não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos. O fenômeno é tão marcante e se apresenta com tal regularidade que, longe de traduzir obra do acaso, parece condicionado às mesmas leis gerais que regulam as outras manifestações sociais de nossa cultura. Trata-se de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.”
Ora, a fome é conveniente às elites, que revivem por ela os anos de escravidão. Sem fome não há dignidade, e, portanto, não há o que se respeitar. Quem nunca presenciou uma discussão em grupo da família em que se argumenta que ninguém mais trabalha depois do bolsa família?
Será por simples obra do acaso que o tema (da fome) não tem atraído devidamente o interesse dos espíritos especulativos e criadores dos nossos tempos? Não cremos… Foram os interesses e os preconceitos de ordem moral, política e econômica de nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente
O combate à fome é uma obrigação de toda a sociedade, que deve lutar por mais programas de apoio social, mais agricultura familiar, mais SUS, mais ensino público. A Universidade, como centro produtor de conhecimento, precisa buscar soluções para as desigualdades sociais e estar a serviço do povo, entendendo que os interesses do venerado mercado quase sempre apontam contra o seu grande financiador: o povo que paga os impostos. E neste caminho, da mesma forma que nas mudanças climáticas, uma visão crítica é fundamental para entender os desdobramentos de inúmeros projetos que resultem em ainda mais acúmulo de renda.
As soluções tecnológicas são necessárias e inevitáveis. Porém, no meio delas há de se inquietar com seus desdobramentos. A quem favorecerá, como será explorado, quem será prejudicado…
Como outrora disse nosso mestre Paulo Freire: “Não basta saber ler que ‘Eva viu a uva’. É preciso compreender qual a posição que Eva ocupa no seu contexto social, quem trabalha para produzir a uva e quem lucra com esse trabalho.” As uvas atuais estão na nanotecnologia, na inteligência artificial, nas mudanças climáticas. E os filhos de Eva continuam com fome, à margem da sociedade, pedindo uma esmola na esquina.
Leia o texto anterior: Sustentabilidade para quem?
Helinando Oliveira é físico, professor titular da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) e atualmente é vice presidente da Academia Pernambucana de Ciências
Helinando Oliveira
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