Até onde vai o limite do melhoramento genético? É importante ter uma lei que regule as técnicas da reprodução assistida
No texto passado quebramos alguns dogmas a respeito da fertilização e discutimos implicações sociais para estes conhecimentos, como entender o que acontece no uso da pílula do dia seguinte. Hoje vou discutir os progressos tecnológicos que envolvem a fertilização, progressos estes que podem mudar nossa reprodução para sempre. E o fato é que nossa moral nem sempre evolui em tempo de entender o que está acontecendo.
Durante o século XX, diversas espécies tiveram seus óvulos e espermatozoides unidos em plaquinhas de vidro, um processo que foi chamado fertilização in vitro (FIV). Foi então em 1970, que Robert Edwards e Patrick Steptoe anunciaram que não só conseguiram obter óvulos de mulheres como cultivá-los em plaquinhas, fertilizá-los e deixá-los progredir até se dividirem em 16 células. Logo após isso, eles começaram a implantar estes embriões em mulheres, mas levaram um tempo para acertar o tratamento hormonal ideal para iniciar uma gravidez. Após uma série de gravidezes curtas, eles conseguiram estabelecer um protocolo que levou a uma gravidez ectópica em 1976, e que teve que ser interrompida. Em 1978 então nasce o primeiro bebê fruto de FIV, uma menina saudável chamada Louise Joy Brown. Louise mostrou ao mundo que a FIV poderia dar esperanças a milhares de casais que não poderiam ter seus bebês sem tecnologias os auxiliando. Mas, clínicas de fertilização ao redor do mundo geram muito mais embriões em fase pré implantação do que geram bebês. E este excedente é descartado. Assim, qualquer conceito moral sobre os direitos destes embriões deve tratar igualmente os embriões na mesma fase dentro do sistema reprodutivo de mulheres. Nossa sociedade criminaliza muito mais uma mulher com gravidez indesejada do que clínicas que dão esperança a casais inférteis. Há muita hipocrisia nisso.
É importante que criemos leis para as propagandas de técnicas de reprodução assistida. Uma breve sondagem por websites de clínicas de fertilização brasileiras mostra que a forma como a informação é passada leva a crer que é praticamente garantida a produção de um bebê. Mas, na verdade, é uma loteria. Segundo o Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC) dos Estados Unidos, tais ciclos de tratamento, quando utilizando óvulos frescos, funcionam em 38% das mulheres abaixo dos 35 anos, 23% entre 38 e 40 anos, 14% entre 41 e 42 e 7% entre 43 e 44. Isso é, a probabilidade de dar errado é muito maior. E estas mulheres carregam o fardo de terem “falhado” quando na verdade as causas são em maior parte intrínsecas à eficiência da técnica. Se estas pessoas assinam um termo de consentimento esclarecido, que o esclarecimento seja completo e comece na propaganda.
Caso os pais candidatos a FIV tenham filhos com doenças genéticas ou histórico de família, é possível identificar a herança de tais alelos antes da implantação. Durante os primeiros dias de um embrião de mamífero, a perda de uma célula pode ser compensada pelas restantes, sem prejuízo à formação do embrião. Da mesma maneira, se o bolinho de células que formam um embrião se dividem em dois bolinhos, os dois podem gerar fetos. No caso, gêmeos idênticos. Assim, como embriões podem viver muitos dias antes de implantar no útero, é possível retirar algumas células do mesmo para identificar se o mesmo herdou o alelo perigoso, ou para selecionar um embrião que possa ser doador para um irmão mais velho. Durante os anos 2000, Karen Mulchinock, uma portadora de uma mutação no gene HTT, que causou neurodegeneração em membros de sua família, deu a luz a duas meninas fruto de FIV e que foram selecionadas por não herdarem o alelo mutado. É uma maravilha a possibilidade de termos famílias livres de doenças genéticas e também da paranoia de passar tais alelos para seus filhos. Mas um problema é que, assim como muitas tecnologias em medicina, o diagnóstico genético pré-implantacional não está acessível para a maior parte da população. Quais são as consequências desta desigualdade a longo prazo? Importante aqui, não temos uma lei que regule as técnicas de reprodução assistida. Mas segundo a resolução nº 2.168/2017 do Conselho Federal de Medicina, tal diagnóstico só pode ser utilizado para alterações genéticas causadoras de doenças. Por enquanto, selecionar características como a cor dos olhos ou o sexo do bebê é proibido. Mas não por uma lei.
Nos últimos dez anos chegamos em um novo patamar, criamos tecnologia para realizar melhoramento genético. O melhoramento genético consiste na edição da sequência do DNA de nossos bebês. Já editamos embriões e células somáticas de animais há muito tempo por técnicas que não são muito seguras para humanos. Mas tudo mudou com a descrição de uma tecnologia chamada CRISPR. Bactérias utilizam CRISPR por milhões de anos como uma forma de adquirir resistência a infecções virais que encontraram no passado. E para isso, elas utilizam uma enzima que é capaz de reconhecer regiões do genoma, cortá-las e introduzir uma nova sequência. Cientistas passaram a utilizar essa técnica por que ela dá direção a edição genômica, insere e corta em um local que o experimentador define. Ela pode ainda ser utilizada em qualquer espécie ou célula, e é barata. O surgimento desta tecnologia logo levou cientistas a se preocuparem com a possibilidade da edição do genoma de humanos. Em 2015, um grupo de notáveis se reuniu e pediu uma moratória antes que qualquer grupo começasse a editar embriões humanos. No mesmo ano, Liang e colaboradores publicaram a tentativa de editar um gene de um embrião gerado por FIV com CRISPR. Estes embriões eram fruto da fertilização de um óvulo por dois espermatozóides e portanto não eram viáveis, morreriam de qualquer forma no início do desenvolvimento. Além da edição não ter sido completa, o CRISPR que estes autores desenharam causou a edição de regiões do DNA que não estavam originalmente no plano. Estas edições fora do lugar são perigosas por que podem levar a alterações em genes importantes para regular a divisão celular por exemplo, e assim produziriam um câncer. Liang e colaboradores concluíram então que CRISPR não é seguro, pelo menos naquele momento.
Mas até onde vai o nosso controle? O que aconteceria se um cientista resolvesse cruzar a barreira e gerar um bebê editado? Pois é, não temos provas ainda mas um cientista, Jiankui He, afirmou recentemente na internet que gerou duas gêmeas editadas por CRISPR. As duas, segundo seu próprio relato, são saudáveis e já estão em casa. Aparentemente ele não passou por nenhum comitê de ética para aprovar o projeto e por isso, o consentimento esclarecido aos pais é duvidoso. As meninas não eram originalmente portadoras de nenhuma doença genética e tiveram seus genomas editados para não ter mais o gene que codifica a proteína CCR5. Aparentemente, em uma delas a edição aconteceu só em algumas células e ela é um mosaico. A CCR5 é utilizada pelo HIV para entrar nos linfócitos e os poucos humanos que possuem uma mutação neste gene são resistentes a infecção. E qual seria a justificativa para editar o genoma destas meninas? O pai das meninas é HIV positivo. Mas será que é uma justifica suficientemente boa? Passando por cima de todos os riscos? O diagnóstico pré-implantação não poderia ser utilizado para determinar se os embriões estavam infectados? Na minha opinião, e na de muita gente, não havia justificativa. Mas bom, parece que nossa opinião não interessa mais se este caso não for exemplar. Aparentemente, Jiankui foi suspenso de suas funções e está sendo investigado. O que será que vai acontecer com ele? Prisão? Depende das leis da China. E se fosse no Brasil, teríamos leis para puni-lo?
Me parece que devemos discutir uma lei em breve. Que tipos de uso poderemos encontrar para o CRISPR? A invenção das cirurgias plásticas melhorou a vida de muitas pessoas que precisavam restabelecer função, como vítimas de queimaduras ou pessoas com obstruções nas vias respiratórias. Mas logo foi utilizada para fins estéticos. Milhões de pessoas estão dispostas a correr os riscos intrínsecos de uma cirurgia para se tornarem mais atraentes. E tudo leva a crer que muitos estariam dispostos a correr os riscos do melhoramento genético por razões fúteis. É possível que em um futuro próximo saibamos quais genes alterar em nossos embriões para aumentar sua probabilidade de serem altos, fortes e talvez, até inteligentes (até agora não existem genes de inteligência descritos, e tudo indica que eles não existem). E onde fica a individualidade de um filho geneticamente mais forte se ele simplesmente não criar interesse em esportes? Daremos aos pais o direito de decidir o genótipo de seus filhos? Corremos o risco de ver o crescimento da eugenia/ racismo através da tecnologia?
O conceito de melhoramento genético se baseia na ideia de que sabemos distinguir entre sequências “boas” e sequências “ruins” de DNA. Mas acontece que esta classificação pode depender de contexto. Se uma pessoa herda apenas um alelo da beta-globina com uma mutação que leva à anemia falciforme, na maioria das condições este seria classificado como um gene “ruim”. Porém, se esta pessoa vive em exposição ao parasita que causa malária, suas chances de sobreviver a uma infecção aumentam. E por isso, este alelo “ruim” foi selecionado em diversas populações humanas onde a malária está presente. Todos nós provavelmente somos heterozigotos carreadores de alelos “ruins” e é por isso que casar com parentes é uma má ideia. Mas nesta variabilidade está a nossa chance de resistir a novas doenças e nos adaptar a novas condições. Sem contar que é onde mora a beleza da variabilidade de nossa espécie.
Veja o vídeo sobre o trabalho do cientista Jiankui He.
Referências
Gilbert, S, Pinto-Correia, C (2017) Fear, wonder, and science in the new age of reproductive biotechnology. Columbia Univesity Press
https://www.cdc.gov/reproductivehealth/infertility/index.htm
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Leia o texto anterior: Fertilização dura dias. E por que isso importa?
Eduardo Sequerra