Uma carta e um poema para refletir sobre a emancipação da mulher negra
O texto e a poesia que compõem a coluna desta semana foram produzidos para a mesa-redonda “Marielle, presente! 730 dias sem justiça!”, organizada pelo Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (Decom/UFRN), como homenagem à Marielle Franco no encerramento da Semana de Comunicação. No entanto, a mesa precisou ser cancelada como medida preventiva no contexto de contágio social da doença COVID-19.
A autora da poesia é Aline Juliete De Abreu, advogada, especialista em Direito Administrativo e mestranda da linha Estado e Políticas Públicas no Programa de Pós-Graduação em Estudos Urbanos e Regionais da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (PPEUR/UFRN). A autora do texto, Ana Paula Campos, é pedagoga, escritora e especialista em Leitura e Literatura pela Universidade Potiguar (UnP). Através de uma carta para as mulheres feministas, Ana Paula conecta-se com autoras negras para refletir sobre empoderamento, feminismo negro e a luta de Marielle Franco em uma sociedade que carrega fortes traços do patriarcado. (Alice Andrade)
“Se eu te falar que a coisa tá preta, a coisa tá boa, pode acreditar” (Rincon Sapiência)
Por Aline Juliete De Abreu
A coisa tá ficando preta
Os pretos estão começando a ocupar
Um lugar, dois lugares, três lugares
Não toleramos mais ser os únicos
Queremos outros e outras de nós
Em abraços sinceros
Em encontros casuais
Debatendo como iguais
Os destinos de um povo
Brancos não falam por nós
Afinal, nós temos voz
E não nos calaremos
A representatividade vem de nós
Marielle humana
Marielle mulher
Marielle mãe
Marielle negra
Marielle mestre
Uma vereadora
Uma semente
Que floresce
E fortalece
Mudanças estruturais
Pelo poder político
De mulheres reais
Nos erguemos do chão
da escola pública
E da comunidade pobre
A nossa trajetória não é de sorte
Nem de herança em moeda
Se chegamos aqui
Foi por provas
com elevado grau de dificuldade
Foi luta
Mas agora
Não duvidamos da nossa capacidade.
——
Carta às feministas
Por Ana Paula Campos
Esta semana eu li duas cartas de mulheres negras a quem admiro demais. Uma americana, Audre Lorde, e outra brasileira, Luana Tolentino. Ao lê-las, recordei-me de uma cena que presenciei com outra mulher negra enquanto aguardava o atendimento auditivo de minha filha. Entre uma leitura e outra, pude ouvir essa senhora falando em alta voz, como que para chamar a minha atenção. Ela dizia: “Essas feministas – olhou pra mim – ficam andando com o sovaco cabeludo e gritando ‘meu corpo, minhas regras’. Em quê elas estão me ajudando?”
Eu senti um soco no estômago. Saí de lá bastante reflexiva e fiquei dias pensando na indagação daquela mulher. A voz de uma mulher preta e periférica se uniu às vozes de Audre Lourde, Luana Tolentino, Marielle Franco e tantas outras. Realidades diferentes que se entrecruzam na esquina da interseccionalidade. Inspirada por todas essas vozes, escrevo hoje uma carta em que trago um apelo:
Caras feministas,
No último mês de março, fez dois anos da morte de Marielle Franco. Por todos os lados vejo gente gritar “Marielle Presente” e a sua imagem toma conta das redes sociais. A expressão comumente associada a ela, ativista pelos direitos humanos, encobre particularidades que considero cruciais para que o debate se estabeleça. Marielle era uma mulher, preta, lésbica e periférica. Por que preciso lembrá-las disso? Porque, em alguns momentos, me parece que é mais conveniente ocultar esses fatores em nome de uma luta mais generalizada. A própria Marielle disse uma vez: “Para que a discussão se amplie é fundamental compreender que estamos em um lugar de tratamento diferente. É preciso reconhecer o racismo.”
Assim como Marielle, Audre Lorde me fazia perceber em seus escritos que nós, mulheres, compartilhamos de violências comuns decorrentes do patriarcado, mas precisamos compreender que, em vários outros pontos, nossas pautas são diferentes. Audre não se sentia abraçada pelo feminismo branco/negro, sendo uma mãe negra lésbica, assim como aquela mãe preta e periférica não vê muito sentido na pauta de todas nós, feministas.
É preciso que haja coerência na luta. Não podemos ser seletivas em nossas batalhas. Lembram-se de quando iniciamos as movimentações contra a reforma da previdência? Djamila Ribeiro nos reforça que mulheres negras e periféricas sofriam e ainda sofrem na informalidade, trabalhando como diaristas, contratadas muitas vezes por outras mulheres. Assim como ela, não me recordo de haver manifestações em favor dessas mulheres. A mulher negra e periférica segue na invisibilidade. Suas dores, suas urgências são pontos de debates. Nossas falas muitas vezes nem chegam até elas como luz emancipadora.
Outra feminista negra, Joice Berth, que discute empoderamento – aliás, um termo que tem sido usado de forma esvaziada de seu sentido teórico – nos faz um questionamento inquietante: “Você trabalha pela emancipação sociopolítica de mulheres ou usa mulheres para trabalhar pela elevação do seu status social?”
Manas, esses dias li um post de uma mulher afirmando que não faz militância, sob o argumento de que a militância limita. Se este também for o seu caso, eu gostaria de retomar a fala de Audre Lorde, como forma de me contrapor a esse pensamento: “Eu ia morrer, mais cedo ou mais tarde, tendo ou não me manifestado. Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você. Mas a cada palavra verdadeira dita, a cada tentativa que fiz de falar as verdades das quais ainda estou em busca, tive contato com outras mulheres enquanto analisávamos as palavras adequadas a um mundo no qual todas nós acreditamos, superando nossas diferenças.”
Por favor, não recebam minhas palavras como um manual, nem pensem que me coloco em uma posição de superioridade. É justamente o contrário. Com esta carta, tento romper com a ideologia machista de que somos rivais e, levantando essa discussão, estendo a mão. Na condição de mulher negra, ressalto a advertência de Angela Davis para nós: “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista.” Digo mais: é preciso ser anticapitalista e combater a homofobia e o preconceito todos os dias.
Não podemos lutar contra uma opressão alimentando outras. Para que Marielle realmente esteja presente dentro de nós, precisamos abraçar as suas pautas a fim de que também sejamos capazes de lutar por todas as Marielles (pretas, lésbicas, trans, pobres, deficientes), que seguem sendo canceladas todos os dias por encarceramento ou por genocídio, físico e ideológico.
Termino esta carta com um último pensamento de Audre Lorde: “Eu não sou livre enquanto alguma mulher não o for, mesmo quando as correntes dela forem muito diferentes das minhas. E não sou livre enquanto uma pessoa de cor permanecer acorrentada. Nem é livre nenhuma de vocês.”
Certa da nossa união,
Ana Paula Campos.
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Leia a coluna anterior: 8M para viver sem medo, 9M para nós mesmas: um relato da onda feminista no México – Parte 2
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom, um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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