A Resistência literária e o papel dos selos independentes
(Cellina Muniz)
Eu tinha praticamente acabado de concluir a leitura de um livro (“A cabeça do santo”, de Socorro Acioli), quando saiu o resultado da 6ª. edição da Pesquisa Retratos da Leitura Brasil, promovida pelo Instituto Pró-Livro. Os dados são meio desoladores: em nosso país, o percentual de leitores – isto é, aqueles que leram, nos últimos três meses, pelo menos um livro (inteiro ou em parte) – é de 47%. No Rio Grande do Norte, esse índice é de 33%. Ou seja, a maioria não lê. Talvez isso explique, em boa parte, tanta gente embarcando na onda de negacionistas e golpistas pronunciando absurdos como a ideia de que “pensar em matar” não tem nada de mais…
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Por outro lado, mesmo com a insuficiência de políticas e programas públicos de valorização da leitura, mesmo com a concorrência das redes sociais, TV´s, streamings e jogos, mesmo com a crise e fechamento de grandes livrarias, enfim, com todos os revezes, a cadeia produtiva do livro resiste, para nossa alegria que, infelizmente, ainda é privilégio.
Sim, para quem é leitor ou leitora inveterado/a, nada como a alegria de ter em mãos aquele deleite tátil chamado livro. É uma sensação divina. Livros, plaquetes, fanzines, revistas fazem a alegria de muita gente e muita gente já se debruçou sobre essa “força estranha” que move o mundo em torno dos impressos em geral, como Umberto Eco, Roger Chartier, Alberto Manguel, Irene Vallejo, Jorge Carrión ou Márcia Abreu, só para citar alguns nomes exemplares. Mas o que a grande maioria não imagina é que, da ideia seminal na mente do autor até a chegada às nossas mãos, os livros percorrem um longo caminho e mobilizam muitas frentes de ação e relações entre sujeitos.
Com maior evidência na cultura letrada, nesse percurso estão as figuras do autor e do editor, afinal, sem esses sujeitos não haveria texto e nem livro. Um dia, então, ocorreu-me indagar: e quando essas figuras se fundem num mesmo indivíduo, a mesma pessoa que escreve o texto e que edita o livro? A história do livro e da literatura está recheada de casos assim, dentre os quais poderíamos citar Virgínia Woolf, que lançou com seu marido Leonard Woolf a Hogarth Press, ou dos amigos Fernando Sabino e Rubem Braga, cronistas já consagrados que decidiram criar sua própria editora (primeiro a Editora do Autor e depois a Editora Sabiá).
Em Natal e no Rio Grande do Norte, há também muitos casos assim, uma significativa parcela de selos editoriais cujos criadores e coordenadores são também escritores, poetas, jornalistas. Instigados a princípio, geralmente, pela autopublicação, esses sujeitos aprenderam a mobilizar, pela própria experiência prática, várias das atividades ligadas à edição de livros: coordenar quem vai diagramar, revisar, imprimir, distribuir e divulgar o lançamento e os canais de venda dos livros. Às vezes até a compra do papel entra nessa jogada e esse sujeito, agora não mais restrito às atividades de criação e textualização em prosa ou verso, precisa saber driblar amplas dificuldades e avançar no campo editorial para que seus textos, transformados em livros ou similares, sejam adquiridos, consumidos, enfim: lidos.
Tenho procurado, já há algum tempo, compreender a especificidade desses sujeitos em seus exercícios de autores-editores. Natal, capital do Rio Grande do Norte, certamente não consta entre os principais centros hegemônicos da cadeia produtiva do livro no país, mas, ainda assim, conta com um número relevante dessas figuras: Adriano de Souza e Flávia Assaf, com a Flor do Sal, Victor H. Azevedo e Ayrton Badriah, com a Munganga Edições, José Correia Torres Neto, com a Caravela Selo Cultural, Marize Castro, da Una Edições são alguns nomes que não só movimentam a vida econômica do setor de impressos como também agitam a vida cultural local.
A partir de relatos de algumas dessas figuras, tenho encontrado algumas unidades em relação a aspectos diversos implicados em suas atividades. Pontuo algumas dessas unidades seguir, dentre outras:
A dimensão do prazer:
Mais do que qualquer outra motivação, o que esses sujeitos revelam em seus depoimentos está muito atrelado ao deleite pessoal em publicar, já que não haveria grandes compensações financeiras. O prazer por editar não só seus próprios títulos, como também títulos de autores que apreciam e/ou gostariam de ler parece ser a grande mola-motriz desses sujeitos. É o que ilustra, por exemplo, esse trecho do relato bem-humorado do autor-editor responsável pela Z Editora:
Meu nome é Osair Vasconcelos, sou jornalista, escrevi alguns livrinhos. Tenho alguns na gaveta. E também sou editor. Virei editor porque editar é um prazer. Em Natal, a gente pode editar pra tentar sobreviver, mas, no máximo, vai ficar sempre nessa tentativa, a sobrevivência, de certa forma, mínima. Ninguém fica tranquilo da vida, do ponto de vista econômico, sendo editor. Em Natal, né? Talvez o dono da Companhia das Letras, da Record e tal, possam comprar um iate com isenção de impostos. Mas aqui em Natal, no máximo, a gente vai tocar nossa vidinha assim, né?
A dimensão do afeto:
Intrinsecamente relacionada ao prazer, a dimensão das afetividades envolvidas também se manifesta com muita força nos relatos dos autores-editores. Os colaboradores e as parcerias (de desejo, amor, de amizade) se revelam como constitutivas nos exercícios desses selos editoriais, o que comprova mais uma vez a máxima de que uma andorinha só não faz definitivamente verão. Um trecho que capta essa dimensão dos afetos pode ser entrevista no relato de Rita Machado, jornalista, poeta, artista do audiovisual e criadora do Giro Selo Editorial Artístico:
(…) através do meu amigo maravilhoso, que esse foi um dos grandes, incríveis artistas dessa cidade, Jean Sartief, que hoje faz aniversário. Tá completando hoje. Mas hoje não mora mais, mora em Portugal, não mora mais aqui. Jean Sartief, um artista visual também, escritor, jornalista. Tô aqui também representando o Giro, que é o nosso sonho, de selo editorial artístico, né? E de trazer, talvez, um livro de uma forma sem colas, a gente pensa sobre uma diagramação um pouco diferenciada. E falar sobre algumas coisas que estão aí adormecidas, talvez. Na loucura de ser editora, em Natal, Rio Grande do Norte, e ele lá em Portugal. Eu sempre digo sempre que ele é um dos meus amigos mais presentes (…). Sou também capista, diagramadora, e aí juntamos esses poderes, que esses acessos que tivemos durante nossa vida, e montamos o Giro, que é um selo editorial que sempre me dá muita alegria, apesar de ser realmente um percurso árduo, de conseguir ver pronto, na rua, do cheiro. Até chegar esse momento é difícil, mas a alegria de tê-lo é importante.
A dimensão processual:
Um outro aspecto que parece constituir essas funções de autor-editor, junto à dimensão do prazer e do afeto, seria a da dimensão processual cujo desenvolvimento necessariamente se faz pela experiência prática. Autores-editores não nascem prontos, tornam-se ao longo de fases e etapas. Certamente, a primeira experiência parte da escrita e da publicação, em seguida, a edição surge como mais um movimento desse ciclo, no qual ser editor é também um processo. É o que ensejam trechos como esse, do depoimento de Márcio Simões, da Sol Negro:
Quando eu comecei já tinha a vontade de fazer livros artesanais, sempre gostei muito dessa coisa do “faça você mesmo”, da autonomia, da independência, eu também não tinha acesso a gráficas, era muito oneroso… Comecei a fazer nesse padrão artesanal, que faço até hoje (…) Começou a aparecer gente, querendo editar, me propondo livros (…) E a coisa foi engrenando aos poucos (…). Um dos autores foi (…) Miriam Coeli, através do filho dela, Eli (Celso de Araújo Dantas da Silveira), me propôs fazer o livro da Myriam, então ele e a irmã que bancaram tudo, me contrataram pra fazer o serviço e eu fiz toda a edição. Foi um livro que saiu em formato grande, capa dura, rodado em gráfica, colorido, com caderno de imagens… Foi um passo muito importante.
Ou ainda nesse outro relato, de João Gothardo, funcionário público, sociólogo e pesquisador, responsável pelo selo editorial O Potiguar:
Observando as publicações dos jornais da cidade, inclusive dos jornais oficiais: Tribuna do Norte, Diário de Natal e outros, vi que existia uma carência de texto no tocante ao resgate da cidade. Textos que falassem mais de livros antigos, fatos antigos que estavam esquecidos da maioria da população da cidade. E sabia que daria certo. A maior dificuldade era manter uma regularidade da publicação, porque praticamente só tinha uma pessoa, Carlos Frederico, que ia atrás disso aí. Carlos Frederico, vulgo Carlos Astral, que, além disso, foi o responsável por trazer publicações, ilustrações… No ano de 2001, já no quarto ou quinto número do jornal “O Potiguar”, resolvi fazer uma pequena coleção de plaquetes que abordavam a cultura da cidade de Natal e do Rio Grande do Norte. Eram pequenas plaquetes que não dava para publicar no jornal por uma questão de espaço, mas que mereciam ser publicadas. O primeiro que decidi publicar foi Policarpo Feitosa, “Vida de Província”. Mas que não deu certo. Resolvi, então, publicar “Sátiras e epigramas de Zé Areia”, de Veríssimo de Melo, com seu Mariano da gráfica Nordeste.
Muito há ainda para se refletir e aprender com essas figuras em seus processos, afetos e prazeres, verdadeiros heróis da resistência num país e estado onde não se lê. E certamente voltarei a falar sobre esses autores-editores e suas “forças estranhas”. Essa expressão, utilizada no começo deste artigo, remete não só ao último livro que li (o já mencionado “Cabeça de Santo”, de Socorro Acioli) mas, acima de tudo, parece-me uma forma bastante adequada para designar a ação desses sujeitos: no campo editorial ainda muito marcado pela triste realidade do não-reconhecimento ou pela tola energia da competitividade, esses autores-editores atuam como que por milagre.
Notinhas sobre o campo literário
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Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Cellina Muniz
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