Thiago Jucá mostra como o ensino religioso confessional está na contramão de uma educação científica
“Quando nossas crianças tiverem uma educação científica reflexiva, crítica e de qualidade seremos milhões marchando pela ciência.”
O ano de 2017 marca os vintes anos da morte do Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire. Talvez o grande legado da obra de Paulo Freire, sobretudo nos livros Pedagogia da Autonomia e Pedagogia do Oprimido, seja o da conscientização dos indivíduos com vistas à emancipação e à autonomia. Essa conscientização deve ser encarada como uma condição sine qua non para a ascensão social e, para a saída de outra, que é a da opressão. Pensando nisso, a educação científica do nosso país precisa ser inserida nesse contexto de conscientização, uma vez que a ciência é também uma janela de leitura da vida. Paulo Freire reforça essa ideia no livro “a Pedagogia da Autonomia” quando diz “Tenho pena e, às vezes, medo, do cientista demasiado seguro da segurança, senhor da verdade, e que não suspeita da historicidade do próprio saber”. Essa historicidade por sua vez, está pautada em uma consciência adquirida ao longo de séculos de produção do saber científico.
Um exemplo disso é que, agora em setembro, esse discurso de Paulo Freire – que permanece sempre atual – ganhou uma conotação ainda maior em decorrência do manifesto de 23 ganhadores de Prêmio Nobel endereçado ao presidente Temer, acerca dos cortes na ciência. Esse manifesto mostra que os laureados não só não estão alheios, como reconhecem que, sem sombra de dúvidas, o desenvolvimento científico de uma nação também representa uma condição redentora e um meio de ascensão social já que, esses cortes ameaçam o futuro do Brasil.
Mas o avanço científico não está comprometido unicamente por uma questão orçamentária. É preciso discutir a educação científica do nosso povo. Nos últimos anos, por exemplo, tem surgido uma resistência enorme de alguns grupos da sociedade civil, em especial, aqueles atrelados a algumas religiões, seitas e crenças que não satisfeitos em limitar, impedir e, até banir o ensino de evolução nas escolas, querem substituí-lo por disciplinas de caráter exclusivamente não científico.
Em contrapartida a esse movimento, a Sociedade Brasileira de Paleontologia (SBP) chegou a lançar em 2014 um manifesto sobre a validade da evolução biológica e seu ensino nas escolas do país. Segundo o manifesto “A Evolução é a teoria unificadora das Ciências Biológicas e explica de maneira ampla e suficiente, com base em incontáveis evidências, a realidade que observamos acerca dos seres vivos, suas origens, diversidade e formas, incluindo a espécie humana (Homo sapiens). Entretanto, é obviamente impossível se replicar 3,5 bilhões de anos de história evolutiva em laboratório….Como corolário, consideramos o ensino de Evolução nas escolas o único reflexo possível do desenvolvimento de nossa ciência. A formação de cidadãos com conhecimento científico atualizado é fundamental para enfrentar os desafios das sociedades modernas. Qualquer tentativa de apresentar em aulas de ciências explicações alternativas à Evolução, que não se sustentem em dados rigorosamente testados, representa uma defesa aberta da irracionalidade e um desserviço à sociedade brasileira”.
Aos críticos dessa ideia, calma! O próprio Papa Francisco, por exemplo, em um discurso, ainda em 2014, na sessão plenária da Pontifícia Academia das Ciências afirmou que a evolução por seleção natural é perfeitamente compatível com a crença na existência de Deus. Não é possível que em pleno século XXI, nossas crianças sejam privadas de conhecer fenômenos biológicos pavimentados em uma sólida base evolutiva como a aquisição de resistência por bactérias e pragas devido ao uso indiscriminado de antibióticos e pesticidas, respectivamente (Isso é o básico!). Obviamente que isso não impede que alguns países como a Turquia retirem a teoria da evolução do currículo escolar, como ocorreu esse ano. Nos EUA, esse embate é antigo em alguns estados (Tennessee e Kansas) e, inclusive já foi parar nos tribunais.
Um desses embates emblemáticos foi retratado no filme “O vento será sua herança” (Inherit the Wind – 1960). O Filme retrata a história do professor Scopes, processado criminalmente por ensinar “a perigosa ideia de Darwin sobre evolução” em uma escola pública do Tennessee, em 1925. O “Julgamento do Macaco”, como ficou conhecido o caso, representou um divisor de águas na história do ensino de evolução em escolas públicas dos EUA sendo que, esses embates duram até hoje (em 1987, por exemplo, a corte americana decidiu que havia incompatibilidade no ensino do criacionismo ao lado da evolução nas escolas públicas uma vez que há separação nítida entre o Estado e a Igreja; já em 2005, o estado americano do Kansas aprovou novos padrões para o ensino de ciências que abrem espaço para professores das escolas públicas questionarem a teoria da evolução em suas aulas).
Já no Brasil, enquanto a SBP e outras entidades lutam para garantir uma educação científica básica aos nossos jovens, o STF vai na contramão ao aprovar “o ensino religioso confessional pluralista e não discriminatório” em escolas públicas. Os termos “pluralista e não discriminatório” até fazem lembrar “a lei da mordaça”, ou melhor, “a escola sem partido”. A Procuradoria-Geral da República (PGR) chegou a entrar com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-4439) junto ao STF para que o ensino religioso fosse apenas uma apresentação geral das mais diversas doutrinas religiosas sem, entretanto, permitir a contratação de professores ligados a um credo específico. Infelizmente, a tentativa da PGR não logrou sucesso.
Vale lembrar que a Carta Magna de 1988 estabelece como obrigatório a oferta pelo Estado, nas escolas da rede pública do ensino fundamental, a disciplina de religião – apesar de a matrícula ser facultativa aos alunos – sendo que o mesmo não acontece com biologia, física e química (é no mínimo algo contraditório, para um estado que se diz laico!). A própria LDB, de 1996, estabelece que o ensino religioso nas escolas públicas é “parte integrante da formação básica do cidadão…e que é assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil (as religiões de matrizes africanas que o digam!), vedadas quaisquer formas de proselitismo (e o ensino religioso confessional aprovado pelo STF?).
No Brasil atual está cada vez mais difícil lutar por uma educação científica de qualidade, quanto mais que desperte a consciência crítica dos nossos jovens. Em tempos em que se valoriza a escola sem partido e o ensino religioso confessional, ao passo que se silencia perante a tentativa de acabar com ensino de evolução nas escolas, vai ficar cada vez mais difícil convencer nossos jovens que destinar verba para a ciência no País é investir no presente e no futuro do nosso povo. Em Angicos, em pleno sertão potiguar, Paulo Freire começou a pavimentar o caminho de uma educação emancipadora. Se não considerarmos a importância desse legado e de uma educação científica também emancipadora, sucumbiremos perante aos ideais de uma sociedade cada vez mais medieval.
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Thiago Jucá