Em edição especial da coluna, o biólogo Eduardo Sequerra garante que é preciso mais tempo para se fazer os experimentos corretos antes de se liberar os agrotóxicos
Estamos todos acompanhando a discussão do Projeto de Lei 6.299/2002, mais famoso por PL do veneno, no Congresso Nacional, que discute a flexibilização das regras para uso de agrotóxicos no Brasil. Seus críticos falam muito sobre os efeitos mais próximos, como aquilo que comemos pode nos causar câncer e outras doenças. Casos de intoxicação direta são alarmantes. Mas além desse efeito direto, a verdade é que qualquer decisão que tomemos será importante para várias gerações. E não só de humanos, como ainda de quase todos os animais que nos cercam. Isso por que agrotóxicos tem também efeitos lentos, que demoram muito tempo para levar a uma causa.
Bom, que agrotóxicos fazem mal todos sabemos (ou fingimos que não sabemos). Mas vocês sabem como? Essas substâncias não atuam exatamente como veneno. Se atuassem, seria muito mais fácil relacionar o seu consumo com o efeito. Mas ao invés disso, agrotóxicos muitas vezes atuam como desreguladores endócrinos. Isso quer dizer que eles alteram o funcionamento de nossos hormônios. Hormônios são substâncias produzidas por um órgão específico de nosso corpo. Mas que caem na corrente sanguínea e causam mudanças em diversos outros tecidos, que tem os receptores para estes. Isso é, hormônios são sinalizadores de longa distância com efeitos em grande parte do corpo. Durante nosso desenvolvimento, a sinalização por hormônios regula a formação de nossos corpos. Estes são importantes para a formação dos vasos sanguíneos, para o crescimento de pelos, para a formação dos órgãos reprodutores etc.
O problema dos desreguladores endócrinos é que muitas vezes seu efeito não é aparente. As anomalias só são perceptíveis se observarmos suas células no microscópio, ou os níveis de expressão dos genes, ou o balanço de reações bioquímicas. Outro problema é que indivíduos mais jovens são geralmente mais suscetíveis por estarem em desenvolvimento. Além disso, a exposição durante o desenvolvimento pode não causar um efeito imediato mas levar a uma anomalia microscópica que só vai se manifestar como doença no adulto, décadas depois. Assim, o efeito de agrotóxicos é muito difícil de ser reconhecido na clínica. Poucos médicos perguntam para um paciente com suspeita de câncer se seus pais manipularam defensivos agrícolas quando ele era criança.
Mas a história mostra que a ciência é capaz de detectar esses fenômenos. Um dos livros mais influentes do século XX foi “A primavera silenciosa”, publicado por Rachel Carson, em 1962. Nele, Rachel faz um apanhado de todos os estudos científicos com agrotóxicos da época e argumenta que eles têm efeitos danosos sobre os animais silvestres e à saúde dos seres humanos. Este livro é considerado o fundador das políticas e movimentos ambientalistas que temos hoje em dia.
Um dos agrotóxicos utilizados na época era o DDT. Esse composto é muito eficiente em matar as insetos que atacam a lavoura. Mas tem também efeitos sobre vertebrados, como nós. E pior, nós não conseguimos eliminá-lo, ele bioacumula. Esse composto tem efeito análogo ao estrogênio, ele inibe que andrógenos como a testosterona se liguem ao seu receptor. A contaminação ambiental por DDT ameaça comunidades de aves e répteis por causar a fragilidade da casca de seus ovos e por causar a feminização dos machos, e consequente perda de fertilidade. O DDT teve seu uso banido mundialmente, inclusive no Brasil desde 1985 nas lavouras e em 1998 pelo Ministério da Saúde.
Cohn e colaboradores acompanharam pacientes mulheres nos EUA, onde o DDT está banido desde 1972, durante mais de 50 anos e observaram que aquelas que foram expostas antes da adolescência tem a probabilidade de desenvolver câncer de mama muito aumentada. Isso é, agrotóxicos podem ser bombas relógio, com efeitos que demoram muito. E as pesquisas para certificar se estas substâncias são seguras necessitam tempo. É necessário que eles sejam testados em animais antes de serem liberados para o consumo humano. E precisamos saber quanto tempo estas moléculas e seus efeitos ficarão por aí. O DDT tem uma meia vida na natureza de 15 anos, isso quer dizer que vai levar uns cem anos para os campos atingirem níveis inativos. E como ele bioacumula, provavelmente todos nós temos um pouquinho desse composto correndo em nossas veias. De fato, já foi demonstrada a presença de DDE, um dos metabólitos de DDT, no sangue de paulistas (Do Nascimento e colaboradores) e acreanos (Freire e colaboradores).
E o banimento do DDT não acabou com o problema. Os pesticidas banidos do passado foram substituídos por outros que continuamos utilizando. Substâncias como o glifosfato e a atrazina, amplamente utilizados no país, foram estudados por dezenas de grupos de pesquisa ao redor do planeta e a conclusão acerca de seus efeitos sobre a formação de câncer e a perda de fertilidade masculina salta aos olhos em qualquer busca por artigos científicos. A atrazina estimula a expressão de uma enzima que converte testosterona em estrogênio, a aromatase. Em anfíbios, animais em que a diferenciação sexual depende mais de hormônios do que cromossomos sexuais, atrazina induz os testículos a produzir ovócitos. Isso é, anfíbios em campos contaminados com atrazina perdem sua capacidade reprodutiva e passam por um sério risco de extinção. Mas os problemas de fertilidade não são exclusividade de anfíbios. Homens expostos a agrotóxicos também tem uma diminuição na sua contagem de esperma. Assim, pode ser que se seguirmos acumulando estes desreguladores em nossa sociedade, cheguemos a um ponto que a reprodução assistida seja cada vez mais necessária.
Bom, já que agrotóxicos nos causam problemas reprodutivos, será que estes problemas são passados para a próxima geração por nossos gametas? Nos últimos 15 anos vimos a comunidade científica descrever mecanismos moleculares nos quais experiências de animais em seus ambientes podem levar a mudanças na expressão de genes de seus filhos, netos etc. Este conjunto de mecanismos é chamado de epigenética, por que não causa alterações na sequência do DNA. Roedores expostos a atrazina ou vinclozolina, um fungicida utilizado em culturas como uvas, alface e cebola, durante a vida uterina têm seus padrões de marcadores epigenéticos alterados. Além disso, seus descendentes apresentam maior probabilidade de desenvolver doenças ligadas à desregulação de hormônios. Se já demorava fazer um experimento em que a exposição ao agrotóxico no desenvolvimento só causa um efeito no adulto, imagina quanto tempo demora um experimento em que a exposição do avô causa um efeito no neto. Sim, senhoras e senhores, precisamos de mais tempo para fazer os experimentos corretos antes de liberar os agrotóxicos. Não menos.
E precisamos de dinheiro para a pesquisa feita em laboratórios públicos. A história da pesquisa sobre os efeitos tóxicos de agrotóxicos mostra que esta indústria age de má fé. Rachel Carson foi alvo de uma campanha de difamação e a Syngenta, fabricante da atrazina, foi pega de calças curtas quando foi obrigada a divulgar documentos internos onde ficou comprovada sua perseguição ao pesquisador Tyrone Hayes. Pesquisas financiadas por estas empresas não são confiáveis, os testes precisam ser realizados por pesquisadores imparciais. E estes estão nas Universidades e instituições públicas.
O mesmo princípio de imparcialidade deve ser aplicado na hora de decidir as leis. Precisamos encontrar uma forma de discutir estes assuntos com nossos legisladores de forma mais efetiva. É muito difícil, até impossível, esperar que nossos deputados não sofram influência da indústria. O PL do veneno terá impactos sobre muitas gerações de seres humanos e animais.
Da mesma forma, o desmonte da ciência pelo governo federal é uma ameaça a nossa capacidade de gerar informações relevantes para a discussão. A participação da comunidade científica nas decisões tomadas sobre políticas públicas é essencial.
Mais informações sobre o PL do veneno
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Eduardo Sequerra
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