Uma reflexão sobre as narrativas que predefinem os papéis e as possibilidades de existência das mulheres pretas
Por Anna Nívea da Silva Costa
Não consigo definir se a arte imita a vida ou o contrário, mas a cada nascimento somos chamados a desempenhar papéis sociais. Introduzidos pela genitália ao mundo azul ou cor de rosa. O universo feminino está repleto de apetrechos, dizeres e normas de conduta para que a boa menina seja produzida, em outras palavras, que o ”orgulho dos pais” alcance o bom futuro destinado às garotas decentes. E se eu não for uma delas? O que é decente nesse mundo? E se meu papel não for o da mocinha indefesa?
Nasci da união entre dois escorpiões natos. De um lado aprendi a matar na unha, o que faço com uma exatidão sem precedentes e, sendo franca, na maior parte das vezes sem sentir remorso algum. E pelo sangue carrego a geniosidade de papai, hoje muito controlada porque Deus faz morada naquele âmago. Eles se conheceram na libertinagem carnavalesca, deve ser por isso, que nada e ninguém me tira da avenida antes do último toque anunciar que os dias de perdição acabaram. Uniram-se jovens e aos 22 anos, idade que tenho hoje, mamãe já estava à minha espera.
Papadia queria um menino – o que veio 6 anos depois, mas assim que soube que ao invés do filho viria ”minha Anninha” o mundo azul foi transformado em um tom rosado. Não faltaram vestidinhos, laços, penteados de lado – ele nunca conseguiu fazer um rabo de cavalo no lugar correto e argumentava que ”de lado” era mais bonito – para que eu estivesse sempre arrumadinha. O bom comportamento é parte do meu jeito acomodado, parte dos ensinamentos deles. Apesar dos esforços e recomendações, minha língua ferina nunca pôde ser controlada, o atrevimento habitava cada parte minha e se me dirigiam um “A” insosso, não me continha até que o restante do alfabeto fosse apresentado da forma mais salgada possível. Não há meninas perfeitas, nem mesmo as obedientes como eu.
Meus pais não estavam criando uma criança preta para o mundo, apenas cuidando da joia rara deles – palavras de papadia. Contrariando o imaginário mundial, eu era uma mocinha de aparência delicada, longos cabelos cacheados, bem magrinha e com um sorriso tímido. De boca fechada, poderia ser a garotinha ideal para ser amiga da também garotinha ideal produzida pela branquitude, aquela que pode ser apresentada sem maiores constrangimentos. No entanto, tenho minha própria história, sabe? E diferente dos filmes internacionais, não me contento em ser o alívio cômico a mercê dos dilemas alheios. Nesta história a protagonista sou eu, e assumo perfeitamente o papel de vilã!
Você não achou que desejaria o papel de mocinha indefesa, achou? Aquele roteiro pronto, sempre na espera do amor ideal, forjada numa tão falsa quanto necessária para Disney e companhia, moldura de bondade, gentileza e felicidade sem fim. Não sirvo para isso. Nem mesmo se Wakanda um dia fosse possível cobiçaria tal papel. Sou uma mulher preta um tanto delicada, porém impetuosa como a comigo-ninguém-pode ou aninga-pará, lutando a fim de conquistar o que o papel de mocinha indefesa jamais permitiria ou me concederia através de um pedido ou beijo encantado. Mas não foi sempre assim, tá? Um dia desejei ser a Narizinho, naquela época não percebia que nossos corpos nascem com os papéis determinados. Apesar de toda minha amabilidade, o personagem de Monteiro L. não foi desenhado para alguém da minha cor. Afinal, o que está foi escrito para figuras como eu?
A tia Nastácia queria ser protagonista
Seja a carne mais barata do mercado ou a sofrida base da pirâmide social, o corpo preto, principalmente o dito como feminino, está fadado a ser colocado em caixinhas sociais de subalternidade. Não há outras narrativas possíveis. O operante do sistema determinou precisamente o lugar do negro no mecanismo. Somos peça facilmente substituída, a que custa menos porque existem várias à disposição, o que resta depois de mais de 300 anos de açoites.
Quais possibilidades são desenhadas para as mulheres pretas? Onde acho minha fada madrinha? Meu corpo serve para protagonismo? Terei que, diferentemente de todas as outras donzelas, beijar um sapo a fim de que meu príncipe apareça? Custava ser um dos passarinhos da Branca de Neve? Diante dessas questões, compreendo que o papel de mocinha não me serve e acredito não servir para tantas outras mulheres também. Não que nos falte simpatia, beleza ou desenvoltura, mas porque os contos de fadas destinam-se a outras figuras. Pensando nelas são criadas Narizinho, pensando em nós são feitas as Tia Nastácia.
Mesmo assim, nossos papéis serão desenhados por nós nesse roteiro desgovernado chamado vida. Passando longe dos paetês, tapetes vermelhos e todas as vantagens sociais que poderiam nos encaminhar ao estrelato sem tanto sofrimento no percurso. Nossos personagens ressurgem da memória escravista, do racismo que se não mata na entrada, te faz querer morrer na saída, como coloca Nátaly Neri. A senzala ainda vive em mim, em você – pessoa preta, e naquele ali que não sei como se chama, mas está acorrentado também. E deste espaço saem as mammy, mucamas, mulatas e negras educadas que serão apresentadas aqui.
Atadas ao passado escravocrata, persiste no imaginário da branquitude que mulheres pretas estão destinadas aos trabalhos manuais ou que requerem bastante esforço físico e quase nenhum uso das habilidades psicológicas. Atuando como meras máquinas em funcionamento. A ocupação de cuidadora foi nomeada como Outsider Within, ou em tradução livre, outsiders internas, pela professora Patrícia Hill Collins, que discorreu a respeito da exploração sofrida pelas mammys durante a criação de crianças brancas alheias.
Essa condição evoca uma estrutura estereotipada que constrói a ”quase da família” ideal: mulher negra robusta, forte, cisgênero, casada, com (muitos) filhos e mais de 40 anos. Alguém considerada sexualmente não atrativa para que o patrão não se encante e a família de margarina seja destruída pela empregada preta ladra de maridos. É a Tia Nastácia contida, salvo os ataques de fúria tidos como característicos do mulherio negro, presa eternamente na cozinha. O seriado infantil terminou em 2007, mas a imagem da cozinheira se faz presente até hoje em séries, novelas, comerciais, diversos programas de tv, e sem esforço podemos listar vários nomes como exemplo.
Se a mammy nasce na fase adulta, a mucama floresce ainda na infância. A jovem companhia das sinhás, também violentada de variadas formas, ouvinte, escada e, a depender dos ânimos, o tapete de suas senhorinhas. ”A escrava de estimação”. Domada o suficiente para andar entre os brancos sem maiores constrangimentos e mesmo desempenhando serviços mais leves, ainda amarrada à senzala. O personagem também foi adaptado ao período escravocrata atual, sendo a ”amiga negra” facilmente detectada em inúmeras produções cinematográficas. Não se pode ver um negro na tela que parece ficar subentendido que sua função ali é a graça, causar o riso no público, ser a figura que todo mundo ama porque está sempre vibrante como se o seu mundo fosse o mais perfeito possível. Logo o nosso. As problemáticas afetam apenas as figuras principais, que em sua maioria, seguem o padrão estético desejado pela massa.
Não condeno os papéis, mas o sistema que nos coloca em palco para desempenhá-los como se fosse a única narrativa possível. O que seria de Rush Hour (A hora do Rush) sem o desajeitado detetive James Carter ao lado de Lee? Consegue imaginar Men in Black (MIB – Homens de Preto), sem o agente J? Também não. A estrutura excludente age de modo tão sistemático que o corpo negro acaba sendo inserido através desse modelo em todas categorias cinematográficas, para que desde a infância nos acostumemos com aquela figura presa a eterna função da felicidade.
No seriado Sex Education, facilmente nos apaixonamos por Eric enquanto temos que acompanhar o desabrochar enfadonho de Otis. É certo que os personagens secundários trazem muito mais vigor à trama do que o principal. A questão evocada é que não importa a temática ou faixa etária, se há um negro na produção, lhe concedem apenas duas opções, a figura cômica ou representar em tela o sofrimento vivido pela maioria dessas pessoas na vida real. O cinema não é o ambiente em que tudo torna-se possível? Não é ali que inúmeras fantasias são criadas? O que sobra de CGI, falta na criatividade dos roteiristas, produtores e cia.
Work It, Tall Girl, e a recente The Queen’s Gambit elencam perfeitamente a referência da coadjuvante negra. Em cada uma dessas produções existe uma jovem negra desempenhando a função de ”melhor amiga da protagonista”, como o ombro amigo, conselheira, a ouvinte fiel, que está sempre – ou na maioria das situações – feliz e disposta. Quando, em 2009, Taís Araújo, assume pela primeira vez na história da dramaturgia brasileira, o papel de Helena na novela das 21h Viver a Vida, não faltaram críticas, insultos e comentários maldosos sobre sua atuação. Quem de fato não estava pronto para o personagem? A atriz consagrada ou o público que não aceitava que a Helena de Manoel Carlos não fosse a branca dos olhos claros? Uma sociedade que nega o racismo entranhado em todos os âmbitos jamais permitia que a paixão nacional fosse corrompida por um corpo que não provoca deleite nos telespectadores.
A exaltação do corpo feminino negro acontece numa época específica do ano, quando curvas, desenvoltura, sorriso largo, seios fartos e bumbum empinado servem de cartão postal. Durante cinco dias, o corpo punido torna-se o mais cobiçado, se festeja a “mulata” como parte da iconicidade do carnaval. “Quem não deseja experimentar uma pretinha”? “Só a cor é do pecado ou as atitudes também”? E mesmo sendo o corpo mais aceitável socialmente, a reduzem à mulata, comparando a sua cor a das mulas, e a vinculam à senzala.
Quando essa figura não chega, meninas que lhe desejaram durante a vida toda se frustram por perder o passaporte da afeição, por acreditarem que de nenhuma outra forma serão bonitas ou desejáveis. E quando ela chega, conduz as jovens para cruel e cotidiana objetificação.
Mulheres que se encaixam nesse padrão parecem perder suas identidades, deixam de possuir um nome, passando a ser a ”vizinha gostosa”, filha ”bem feita” de fulano ou ”bonita do bonde”. Esta personagem representa o símbolo do carnaval, usada comumente para atrair os olhares estrangeiros. A Globeleza, responsável por anunciar durante anos o período da folia, sendo praticamente vendida na tv aberta como objeto sexual.
Se a festa dura uma semana, o racismo dura a vida inteira. No restante do ano seu corpo de nada vale. De volta à caixa da subalternidade, carrega a ideia de que serve apenas para uma transa e jamais seria o sonho de uma sogra ou decente o bastante para um compromisso. Se sua sensualidade for explorada ou não, isso pouco importa para quem do centro determina o lugar periférico dela no sistema. Desde a infância, seu corpo parece até sujo se comparado ao das outras meninas brancas de sua idade, como se os atributos da genética lhe tirassem a inocência. E completamente formada, vê-se presa ao infeliz estereótipo da mulata. O romance, meus caros, não cabe nesse papel.
A última personagem rememorada neste ensaio é a da preta educada, que em virtude dos esforços de pais e familiares, teve acesso à educação, aos modos corretos para uma garota decente. Lélia Gonzalez na sua trajetória acadêmica ilustra bem o que vou discorrer. A moça esforçada, centrada sempre nos estudos, que por não incomodar a branquitude era aceita nos ambientes. Todavia, se você não nasce sabendo que é preto, a vida trata de te mostrar. Quando a consciência racial pousou naquela mente, o que antes passava despercebido virou pauta de teses, artigos, livros, debates e toda uma vida dedicada a luta antirracista. Quantas Lélias existem por aí? Quantas mulheres pretas que além de ocuparem o espaço acadêmico sentem-se na obrigação de serem as melhores por causa da cor que carregam? E quando nossas vozes emergem, quem fica ao nosso lado na trincheira? Assim que assumimos essa luta, enxergamos nitidamente a quem o discurso incomoda. Aqueles que pagariam para nos manter caladas, no mais amplo sentido da palavra.
E a essa representação que flerta com a figura da donzela, embora não possua os traços corretos para tal, também é determinado um padrão a ser seguido. Esta mulher não se encaixa nas categorias já citadas, o que não impede que haja uma caixa para aprisionar seu corpo. Ao utilizar a inteligência e não o bumbum, deve haver uma conduta que a faça decente, para que mesmo preta, seja boa moça. Cria-se então, o estereótipo da ”preta educada”, sempre contida, cujo único propósito de vida está nos livros e aulas. Tiram-lhe a chance de explorar seu corpo, sua sensualidade, seus gostos, porque o roteiro já está pronto, ela apenas precisa encenar. O comportamento calmo, acomodado ou caseiro, por vezes alimenta a fábula, mas quem garante que essa quase princesa deseja que uma torre aprisione suas vontades?
E se ao invés de uma música calma, toque funk no fone de ouvido? Por que o espanto em vê-la dançar mais solta? Você nunca imaginou que a garota poderia saber todas as músicas daquele repertório aleatório? Ou que ela não é apenas uma máquina de textos e debates? Isso ocorre, porque quando desenham nossos destinos, nunca esperam que possamos ir além do projetado. Custa-lhes aceitar que não cabemos na caixinha ou alguma rasa definição daquilo que deveríamos ser e não somos. Falta percepção em entender que utilizar mais uma parte de si, não anula as demais. A estudante também merece o gozo e não somente o trabalho árduo de ter o estudo como um dos poucos caminhos justos que conduzem a ascensão.
A voz potente, o discurso cirúrgico, a fala precisa podem soar daquele corpo que você conhece apenas dentro dos limites acadêmicos, que em outros espaços atua por suas próprias regras. Isso invalidaria a trajetória? Tornariam as declarações ditas menos assertivas? Existem parâmetros que definam essa personagem como decente? Quais deles são insultados quando a moça rebola? Por que minha carne deve atender às expectativas impostas pelo patriarcado?
No decorrer do texto, foram apresentados alguns papéis que são impostos a mulheres pretas. Isso não implica dizer, que apenas este corpo sofre violências e opressões do sistema, dentro daquilo definido como correto, justo ou decente, tudo que foge à regra, necessita de intervenção. Por isso, há várias caixinhas sociais para todo tipo de gente que reivindica a autonomia sobre o próprio corpo. As categorias citadas não se tratam de verdades absolutas, mas resquícios de um período escravista que ainda aprisiona inúmeras mulheres dentro de um recorte estrutural. Felizmente nem todas se encaixarão nas personagens, embora em maior ou menor intensidade sejam alvos de uma sociedade racista que nunca se satisfaz com uma mulher preta no topo.
Acredito que assim como nenhuma de nós nasce mulher, também não nascemos tendo ciência de que possuímos corpos políticos. Judith Butler não poderia ser mais certeira ao nos definir como vivos e não vidas, considerando que estamos em uma sociedade que tenta a todo custo silenciar, apagar e violentar tudo aquilo que nos faz ser quem somos. Destruir todo e qualquer elemento que mantenha a ancestralidade viva na comunidade. Este Brasil, nascido do estupro, nega-se a crer que alimenta cotidianamente uma ideia nociva e doente que mata a cada 23 minutos um filho desta terra. Imersos na ideia de superioridade, continuam prendendo-nos balas, como se fossem os europeus do século XVI. Não percebem que aqui ninguém é branco? Em um mundo que rejeita preto, qualquer cor se torna válida ou melhor que a nossa.
Seja em grandes produções nacionais ou nas plataformas de streaming, ainda existe um longo caminho até que os diversos ambientes estejam devidamente empretecidos. Quando uma atriz preta ganha as manchetes/páginas/sites de fofoca por interpretar a primeira mocinha em determinada novela, percebemos que independente da arte imitar a vida ou a vida servir de inspiração para arte, os papéis estão bem sinalizados em ambos os espaços. Competência não basta, precisamos oferecer bem mais para ”compensar” nossa cor. E o que nos resta se o papel da boazinha não serve? Como protagonistas de nossas próprias trajetórias, podemos ser tudo o que os grandes roteiristas são incapazes de elaborar.
Escolho a vilã, pois como pontuei no começo, herdei a acidez necessária para tal. Não perderei tempo algum atrás de nenhuma mocinha, ela sequer existe neste enredo e deixo para outros personagens da vida a chateação de atrapalhar romances alheios. O dragão que ronda o castelo nada mais é que meu amigo fiel e também não há uma família desestruturada que me fez assim, foi apenas sorte do destino. Nenhuma maçã envenenada, trabalho forçado ou feitiço será lançado aos que estiverem sobre meus cuidados, apenas as verdades necessárias de uma língua incuravelmente ferina. Quanto ao príncipe, não preciso que me salve da torre onde adoro morar e, honestamente, prefiro um Flynn descarado ao modelo encantado. Minha personagem é essa, qual a sua?
*Anna Nívea da Silva Costa é natural de Aracati/CE, tem 22 anos e cursa o sexto período do curso de Jornalismo da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. Apaixonada por história, encontrou no curso uma maneira de unir essa e suas outras paixões: escrita, leitura e cultura. Falante como é, participa de todas as discussões onde sente-se livre para verbalizar sua percepção de mundo. Comunicadora preta, utiliza a fala, suas vivências e escritos como ferramentas na luta antirracista.
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Leia a coluna anterior: Consciência negra e a dúvida sobre para onde olhar
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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