Pesquisa do colunista Eduardo Sequerra desvenda o mecanismo pelo qual drogas antiepilépticas induzem defeitos na formação embrionária. Artigo foi publicado em periódico de Neurociência
A epilepsia é uma desordem do sistema nervoso em que o cérebro apresenta surtos de atividade aumentada e involuntária. Estas desordens podem ser controladas por drogas que diminuem a condução nervosa no cérebro, as drogas antiepilépticas, e esses pacientes muitas vezes podem ter uma vida normal. O problema é que as drogas antiepilépticas podem trazer problemas para a formação do sistema nervoso de bebês de mães que as tomam. E apesar do problema ser conhecido desde os anos 1970, só agora foi demonstrado um mecanismo pelo qual as drogas atuam sobre essa formação. Esse foi meu trabalho no laboratório de Laura Borodinsky, publicado semana passada, no periódico científico JNeurosci (The Journal of Neuroscience)*.
No início do desenvolvimento, mais precisamente na terceira semana de gravidez, um grupo de células na superfície do embrião decide se tornar o nosso sistema nervoso central. Neste momento, estas células estão organizadas em um epitélio, isto é, agarradas umas às outras lateralmente, como uma folha de papel, e agarradas a uma base de proteínas extracelulares, chamada lâmina basal. Após elas se decidirem por diferenciar em células neurais, iniciam uma série de alterações na sua forma que seguem uma coreografia populacional. No fim, aquelas células organizadas como uma folha de papel se dobram até formar um tubo, o tubo neural. Mais tarde no desenvolvimento, o tubo neural se diferencia em nosso cérebro e medula espinal.
Mas esse tubo pode falhar em se formar, tanto por conta de mutações em alguns genes, como por conta de fatores ambientais. Defeitos de tubo neural podem levar à morte do embrião, como no caso de fetos anencéfalos, ou causar diversos comprometimentos àqueles que sobrevivem, como a paralisia dos membros inferiores em casos de spina bífida. Um dos fatores ambientais que induzem defeitos de tubo neural são as drogas antiepilépticas, como a gabazina e o ácido valpróico (VPA). Pesquisadores procuram há muito tempo por que estas moléculas inibem o dobramento do tubo neural, mas, em geral, não procuravam os alvos que estas drogas atingem no sistema nervoso. Afinal de contas, se o embrião nem tem neurônios ainda, por que deveríamos olhar para moléculas envolvidas na transmissão sináptica?
Mas acontece que neurônios já apresentam sinais de atividade elétrica muito antes de formarem suas sinapses ou até serem neurônios diferenciados. Eles expressam receptores de neurotransmissores mesmo enquanto ainda são células tronco neurais. A sinalização por estas moléculas é importante para regular a divisão celular, a migração, a diferenciação, a extensão de axônios (os cabos que conectam neurônios distantes uns dos outros) etc. O problema é que não sabíamos o quão cedo isso começava. Foi com essa ideia na cabeça que eu e Laura decidimos trabalhar juntos e me mudei para o seu laboratório. Naquela época, a Laura estava iniciando a formação do seu grupo que estuda o desenvolvimento em embriões do sapo Xenopus laevis. Estudar os embriões de anfíbios é interessante por que estes se desenvolvem fora da mãe e por isso são muito facilmente manipuláveis em experimentos.
Nós logo vimos que as células da placa neural (as células neurais ainda organizadas em folha, antes de dobrar) expressavam receptores para diversos neurotransmissores. Estas células também produzem grandes entradas do íon cálcio em seu citoplasma, mostrando uma atividade elétrica primitiva. E aí então resolvemos concentrar em um receptor do neurotransmissor glutamato muito encontrado em neurônios jovens, o receptor do tipo NMDA (rNMDA). Se inibirmos esse receptor com um inibidor específico ou inibindo a tradução do seu RNA mensageiro, os embriões formam defeitos de tubo neural. Legal, até aqui sabíamos que os alvos que as drogas antiepilépticas utilizam para controlar as epilepsias no cérebro adulto também estão presentes durante o dobramento do tubo neural. E que se inibirmos esta sinalização temos um efeito muito parecido ao das drogas, a indução de defeitos de tubo neural.
Mas faltava mostrar que as drogas antiepilépticas induzem defeitos de tubo neural através da inibição do rNMDA. Apesar dos fortes indícios de que as duas coisas estavam ligadas, ainda havia a possibilidade das drogas antiepilépticas interferirem com o dobramento do tubo neural por outro mecanismo independente de neurotransmissores. E é aí que entram os experimentos de resgate. Nestes experimentos tentamos recuperar a formação do tubo neural na presença do ácido valpróico através da recuperação da sinalização pelo rNMDA. E de fato, se incubarmos os embriões com VPA e um excesso de NMDA (que ativa o receptor) aumentamos o número de influxos de cálcio. Além disso, estes embriões fazem defeitos de tubo neural menos extensos. E se ativarmos artificialmente a enzima intracelular (chamada MEK), que naturalmente o rNMDA só ativaria quando o glutamato se ligasse, a mesma redução na extensão dos defeitos acontece. Claramente estes experimentos produzem um resgate parcial do dobramento do tubo neural, o que sugere que pode haver um balanço ótimo na ativação das moléculas manipuladas. Além disso, sugere que podem haver outros alvos das drogas que contribuam para a regulação da formação do tubo neural.
Neste artigo demonstramos que não é seguro interferir com a sinalização pelo receptor tipo NMDA durante o dobramento do tubo neural. Ela é vital para coordenar fenômenos como a divisão celular e a migração de diversas células durante o dobramento de todo o tecido. Este tipo de abordagem pode ser útil no futuro para encontrarmos drogas mais seguras para os embriões de mães epilépticas.
* Nossa Ciência informa: O JNeurosci é uma publicação da Society for Neuroscience, que, de acordo com o EurekAlert, é a maior organização mundial de cientistas e médicos dedicados a entender o cérebro e o sistema nervoso. O artigo está disponível em inglês para assinantes do site.
Explicação científica para o vídeo: Neste experimento injetamos uma molécula que inibe a tradução do RNA mensageiro do receptor tipo NMDA. Depois que acontece a fusão do espermatozoide com o óvulo, esta célula se divide em duas, a molécula foi então injetada em uma destas duas células junto com uma substância fluorescente vermelha. Este procedimento faz com que a molécula só entre em células de um lado do corpo do animal, nesse caso o direito. No vídeo então vemos que o lado da placa neural sem o inibidor dobra-se normalmente enquanto o lado marcado falha em se dobrar completamente.
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Eduardo Sequerra
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