Do ferro à lama Coluna do Jucá

quinta-feira, 31 janeiro 2019
O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes. Fonte: Google

Breves reflexões e comentários acerca do episódio de Brumadinho

Quem não conhece o ferro? Quem nunca utilizou um material, seja ele qual for, o qual continha em sua composição o ferro? Afinal, é possível substituí-lo sem, contudo, comprometer o desenvolvimento do mundo (dito) civilizado? Segundo o jornalista e escritor Eduardo Galeano “o desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos do que navegantes”. É verdade. Não há só náufragos e pedras pelo caminho, há muita lama também. Ah, a Vale!

Da idade do Bronze à Idade dos Minérios, a mineração proveu muito mais que matérias-primas. Ela proveu uma fonte subterrânea de poder ao senhor do progresso e do desenvolvimento, o Produto Interno Bruto (PIB). Para este não basta a natureza fornecer hematita (Fe2O3), pirita (FeS2), magnetita (Fe3O4), siderita (FeCO3), limonita (Fe2O3.H20) e tantas outras “itas”, é preciso adequar-se à lógica do rentismo − mesmo que isto não lhe renda os dividendos pelos milhões e milhões de anos de intenso trabalho geológico. Quanta injustiça socioambiental. Ah, a Vale!

Os fins justificam os meios, afinal a ciência, a tecnologia, o progresso e o desenvolvimento legaram-nos o aço. E, sem ferro, não há aço. Portanto, o ferro e o aço são grandes locomotivas do desenvolvimento. Será? Ainda segundo Galeano, “(…) O aço é produzido nos centros ricos do mundo, o ferro nos subúrbios pobres; o aço paga salários da aristocracia operária, e o ferro, diárias de mera subsistência (…)”. Os direitos que valem são, apenas, aqueles referentes aos negócios? Deve ser a famosa meritocracia que concede bônus para alguns e ônus para outros. Ah, a Vale!

Tantas vidas, tantos sonhos, tanta biodiversidade sucumbiu, ou melhor, naufragou diante de um tsunami de rejeitos repentinamente liberados. Será esse o ônus do suposto desenvolvimento que recai sobre nós? Ou são, na verdade, os pecados alheios? Uma espécie de pena quase coletiva, a qual penaliza profundamente uns e a outros nem tanto. Afinal, parece que esse tal de desenvolvimento exige de alguns essa tal de impunidade. Quanta expiação ainda teremos que provar? Ah, a Vale!

Mas o mar de lama não devia estar estocado, confinado, represado? Devia. Estava. Esteve por um tempo. Não está mais. Sujou até a tão propagada e exaltada lógica do rentismo, o tão sonhado crescimento do PIB, as tão almejadas prioridades econômicas. Antes repetiam incansavelmente alguns especialistas, “o crescimento do PIB traz consigo progresso e desenvolvimento”. Mas exatamente para quem? O que dirão, agora, os especialistas diante da sujeira que se avolumou e abaixo da qual residem muitos. Já sei. Lágrimas de crocodilo. Dirão que não há um único grande culpado. Tão pouco, um salvador da pátria. Nunca houve. O que há, na verdade, é um imenso vale, onde não cabe tanto pesar. Nem mesmo que preenchido com todo Pb, Zn, Cd, Hg, Cd e Cu que há na crosta. Ah, a Vale!

O que é repulsivo e proibido não pode encontrar abrigo entre nós, muito menos em nome do suposto desenvolvimento. Absurdo? Certamente. Assim também como transformar o licenciamento ambiental e a fiscalização em advogados do atraso. Custo/benefício? Investimento? E o sacrifício ecológico e, consequentemente, o humano, não entram nessa equação? As questões supracitadas poderiam, por exemplo, referir-se ao episódio de Mariana. Mudar-se-iam apenas os números. Ah, a Vale!

Resumo da ópera: não houve aprendizado até agora. Exige-se muito ao cobrar que esses episódios não continuem a mudar apenas de nome? Pois se assim o for, aí terão privatizado até a nossa capacidade de se indignar. Ou seja, ao invés de continuarmos progredindo como fizemos ao ir da idade da Pedra Lascada à Idade do Aço, regrediremos do ferro à lama. Ah, a Vale!

Referências:

Melo et al. Chumbo e zinco em águas e sedimentos de área de mineração e metalurgia de metais. Quim. Nova, Vol. 35, N°. 1, 22-29, 2012;

Lemes et al., Influência da mineralogia dos sedimentos das bacias hidrográficas dos rios Mogi Guaçu e pardo na composição química das águas de abastecimento público. Quim. Nova, Vol. 26, N°. 1, 13-20, 2003

Eduardo Galeano. As veias Abertas da América Latina. Ed. L&PM Pocket. Pág. 477.

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Leia o texto anterior: O imperialismo ecológico no contexto global

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

Thiago Jucá

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