A humanidade é a maior acionista do progresso científico e todos têm direito aos seus dividendos
A ciência é uma espécie de luneta míope, e, apesar das suas limitações, não se tem conhecimento a respeito de um instrumento melhor para compreender as nuances da natureza, inclusive, aquelas que permeiam os confins do universo. Sob a ótica humana, essa ferramenta é tão valiosa que o seu progresso destina-se de maneira indiscriminável, ou pelo menos deveria, a qualquer Homo sapiens. Todos temos o direito de desfrutar dos benefícios do progresso científico, isto é, o Direito à Ciência, como preconizado no Artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) de 1948.
A prestigiada revista PNAS publicou um artigo de opinião no final do mês passado reiterando a importância, em especial nos dias atuais, do referido artigo. Utilizando-se de um tom contundente, os autores alertam que engana-se quem pensa que esse assunto diz respeito apenas àqueles que estão imersos no ambiente acadêmico ou ainda aos estudiosos dos direitos humanos. Atinge, na verdade, qualquer cidadão do mundo. O direito ao progresso científico envolve temáticas relacionadas à saúde, ao bem-estar, à alimentação, ao clima e à educação, para citar alguns exemplos. Há ainda inúmeras outras questões subjacentes que envolvem as dimensões legais, morais, políticas e até filosóficas.
Um exemplo da multidimensionalidade dessa discussão diz respeito ao aumento das proteções de propriedade intelectual e à privacidade de dados. Esses dois aspectos ameaçam a liberdade científica de acesso às informações necessárias para as pesquisas, em especial, em países sob forte vulnerabilidade econômica, social e política. Diante desse contexto, como garantir acesso ao conhecimento científico retirando informações úteis e inovações que deveriam ser de domínio público? Por outro lado, como atrair investidores e consequentemente financiamento científico, sem o atendimento dos interesses comercias? Cabe, portanto, aos governos equilibrar essa balança de maneira que as mais diversas partes (autores, inventores, financiadores, por exemplo) beneficiem-se, bem como a coletividade. E afinal, todos ganham?
Já a revista Science perguntou a vários cientistas como as aplicações do conhecimento poderiam endossar o apoio aos direitos civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais. Ou como o acesso ao progresso científico poderia beneficiar as pessoas. A pesquisadora Lauren Segal, da Universidade de Nebraska, nos Estados Unidos (EUA), ao tratar do direito à alimentação, afirma que: “As comunidades pobres têm acesso limitado aos alimentos nutritivos, o que aumenta os riscos de obesidade e câncer. Assim, o acesso aos alimentos nutritivos não deve ser visto como um luxo para os ricos, mas sim um direito fundamental para todos. Nossas experiências com campanhas antitabagistas, bem como outras de saúde pública, fornecem informações sobre estratégias viáveis para diminuir a contribuição da nutrição de baixa qualidade sobre o câncer. Reformar as exigências nutricionais em refeitórios escolares, tributar alimentos não saudáveis, regular a publicidade, dirigir campanhas informativas e subsidiar alimentos frescos são apenas algumas das políticas que podem ajudar a garantir o direito humano à alimentação e à boa saúde”.
Já a pesquisadora Jennifer Chen, da Escola de Medicina de Yale, (EUA), ao tratar do direito à saúde, afirmou que: “Milhões de pessoas são afetadas por problemas de saúde comuns devido ao diagnóstico tardio ou aos cuidados médicos inadequados. Muitas dessas pessoas não têm acesso a hospitais ou exames médicos dispendiosos. Fornecer-lhes um sensor de saúde vestível que acompanhe os sinais de saúde vitais seria um grande passo para alcançar o bem-estar pessoal e a saúde pública”.
No tocante ao direito de ter um ambiente saudável, a pesquisadora Fernanda Oda, da Universidade de Houston, (EUA), afirma que: “O acesso à energia é uma porta de entrada para a obtenção de muitos outros direitos que são comumente discutidos (saúde, moradia segura, educação e compartilhamento de informações que promovam um governo saudável). No entanto, a questão energética não deve perpetuar ainda mais as mudanças climáticas que estão comprometendo a alimentação e a segurança de muitas pessoas no mundo. A pesquisa com energias renováveis visa estimular a educação, a saúde, as comunidades e as economias, ao mesmo tempo em que reduz as mudanças climáticas catastróficas”.
Assim, tomando-se como pressupostos as considerações dos pesquisadores mencionados, o direito à ciência é muito mais que um compromisso que foi transformado em obrigação junto ao direito internacional. Fortalece e beneficia a sociedade de uma maneira ampla, torna-a mais crítica, mais racional, e, sobretudo, menos suscetível aos seus devaneios autodestrutivos.
É importante também ressaltar que ainda há muito o que avançar no que diz respeito ao alcance dessa garantia, em especial, nos países em desenvolvimento. E nesse contexto, a divulgação e a popularização científica contribuem muito para pavimentar essa estrada. Garantir esse direito a todos é compreender de maneira plena que os dividendos desse progresso representam um direito universal, para o qual a busca deve ser infindável. Só assim, a humanidade – a acionista majoritária do progresso científico – será capaz de seguir em frente com lucidez.
Referências
Porsdam Mann et al. (2018) Opinion: Advocating for science progress as a human right. PNAS October 23, 2018 115 (43) 10820-10823; https://doi.org/10.1073/pnas.1816320115
Lauren Segal et al. (2017) Promoting human rights through science. Science, 06 Oct 2017: Vol. 358, Issue 6359, pp. 34-37, DOI: 10.1126/science.aaq1083
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Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá