Povos originários ocupam as redes em um movimento de re-existência
Por: Luan Matheus dos Santos Santana
Dos povos originários africanos, emerge a filosofia que desafia o modo de vida capitalista contemporâneo: o Ubuntu [1]. Como ensinavam os mais velhos, a razão de ser do indivíduo está na coletividade e vida em comunidade, portanto, “eu sou por que nós somos”. O Ubuntu como ética de vida entende cada um de nós como partes interligadas e não com átomos ou ilhas isoladas umas das outras.
Das florestas de Abya Yala (América Latina), surgem as ideias que desafiam o projeto de “desenvolvimento” do neoliberalismo: o Bem Viver [2]. O economista equatoriano e professor da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, Alberto Acosta, resgatou parte dessa memória inviabilizada e, ao mesmo tempo, tão viva nos modos de vida tradicionais. Segundo ele, o Bem Viver se configura como uma filosofia indigena, onde todas as formas de vida (seres humanos, animais, plantas) são partes de um todo e regidas pelo mesmo conjunto de direitos fundamentais. Nessa perspectiva, a natureza não se separa de nós e não é domínio do ser humano, porque nós somos a própria natureza. Somos parte integrante de um todo.
As filosofias ancestrais do Ubuntu e Bem Viver são caminhos para outros mundos possíveis; se contrapõem aos sistemas políticos hegemônicos e oferecem saídas para as desigualdades globais. São modos de vidas distintos daqueles defendidos pela Dama de Ferro do Ocidente, Margaret Thatcher, que durante muito tempo foi a representante máxima do Neoliberalismo na Europa. “Não há sociedade, só indivíduos”, dizia a primeira-ministra britânica [3], em uma tentativa de minar nossas forças coletivas. Essas ideias ganharam o mundo, os sistemas políticos, as fábricas e até os meios de comunicação.
Sem a força coletiva, apenas o poder político e econômico era detentor do direito à palavra. Uma hegemonia branca e hetoronormatiuva, de raízes europeias dominou os meios de comunicação de modo muito similar nos países latinoamericnois. Ismaelín Benítez [4], jornalista e professora venezolana, revela essas semelhanças. Segundo ela, os grandes conglomerados midiáticos da América Latina nascem de pequenas empresas, com famílias conservadoras, encabeçadas por homens e com forte vínculos ao poder político de direita.
Mas algo mudou nas últimas três décadas. O avanço e popularização da internet, ainda que modo muito desigual, possibilitou o surgimento de vozes abafadas pela grande mídia. O ano de 2013, em especial, é um marco histórico [5] e ponto de partida para um novo momento da comunicação contra-hegemônica no Brasil, disputando a audiência e o monopólio da verdade. Em nossa dissertação de mestrado, concluída recentemente, analisamos esse cenário e defendemos a ideia de Re-existência Digital [6] como um fenômeno contemporâneo, responsável pela reconstrução das narrativas de sujeitos e grupos sociais invisibilizados e subalternizados, através das novas tecnologias e redes sociais.
A partir de iniciativas locais, no Piauí, foi possível identificar a conformação desses espaços de Re-existência Digital, que vai muito além da ideia de resistência, geralmente associada à reação ou ao confronto. O que estamos falando, portanto, é um espaço de re-construção de histórias e narrativas, de re-humanização dos sujeitos subalternizados, de emancipação e exercício do Direito Humano à Comunicação.
Esse fenômeno aponta para o futuro (com mais pluralidade de vozes na rede) e ao mesmo tempo para o passado. Afinal de contas, não seria possível construir um novo modo de fazer a partir das velhas premissas eurocêntricas que conformaram os modos de fazer comunicação e jornalismo. Foi preciso então beber noutras fontes, buscas outras experiências, re-criar outras teorias e práticas comunicativas.
Em um movimento de respeito ao passado, jovens comunicadores brasileiros, negros/as e idigenas, estão reiventando a forma de fazer jornalismo, reconectando as experiências coditianas e os atravessamentos ancestrais aos fatos que interferem no dia-a-dia dos povos indígenas e do povo negro. Um jornalismo identitário, étnico e comprometido com a luta dos povos subalternizados.
A comunicação indígena
“Ocupando as teles e demarcando as redes”, é assim que Erivan Bone Guajajara descreve o trabalho que a Mídia Índia [7] vem desenvolvendo no Brasil, desde o ano de 2017. Em curso promovido pelo Portal Ocorre Diário, Erisvan descreve o modo de trabalho e as ideias que regem a criação desse projeto de rede de comunicação formado exclusivamente por jovens indígenas.
“Estamos contando a nossa história como ela realmente deve ser contada. Ela é virtual, mas é territorial. A Mídia Índia só é possível porque está enraizada nos territórios e fala com e para os povos indígenas. A gente acredita na força dos nossos ancestrais e dos nossos encantados. Vamos ocupar a comunicação, a música, todos os espaços que forem possíveis, porque nós, povos indígenas, somos a cura da terra. Esse trabalho de ancestralidade que nos faz permanecer nas ruas”, diz Erisvan.
A Mídia Índia, que nasceu em 2017, tem o objetivo de se fortalecer como uma porta voz da luta indígena nas redes sociais, podendo se fortalecer também enquanto uma mídia independente. Hoje a rede conta com dezenas de jovens indígenas de diferentes localidade do Brasil que se dedicam ao projeto, conquistando um lugar importante na difusão das pautas e temas transversais à causa indígena.
Diretamente do Rio de Janeiro, a Web-Rádio Yandê [8] traz o modo tradicional indígena para o formato digital. Autointitulada a primeira web rádio indígena do Brasil, o grupo iniciou seus trabalhos em 2013 e produz conteúdos de cunho educativo e cultural, tendo como objetivo a difusão da cultura indígena através da ótica tradicional, a partir da apropriação das novas tecnologias e da internet.
A jornalista Raquel Gomes Carneiro [9], ao analisar os processos etnocomunicacionais dos povos indigenas, acredita que “os sujeitos comunicacionais indígenas elaboram suas práticas, mobilizando marcas identitárias étnicas em busca de uma etnomídia cidadã”. Ela acredita que isso se faz necessário na medida em que a “forma de comunicar de um povo não funciona para outro, por não fazer parte da mesma rede dialógica de oralidades, matrizes, costumes, gramáticas, narrativas e tradições”.
Foi da necessidade de fortalecer, dar visibilidade e incentivar a causa indígena que a Rádio Yandê começou a romper com os padrões tradicionais da comunicação e gerar um processo comunicativo que valorize a ancestralidade e cultura dos povos originários. Para o grupo, esse trabalho torna possível uma convergência de mídias, mesmo nas mais remotas aldeias e comunidades indígenas, e acreditam que isso é uma importante forma de valorização e manutenção cultural.
O jornalismo negro
“O Ceará Criolo é um coletivo de comunicação que visa à ir na contramão do discurso excludente e enervado de clichês das empresas de comunicação sobre a população negra. Porque essa população negra precisa de um espaço qualificado de afirmação. De visibilidade. De debate honesto e inclusivo. De identificação. Um lugar de desconstrução de discursos pré-fabricados e cheios de preconceitos”.
É dessa forma que o Portal Ceará Crioulo [10] dá as boas vindas aos seus leitores, afirmando seu lugar social, comprometido com a história e memória do povo negro, desviando da falácia da imparcialidade jornalista e se conformando com um espaço onde é possível re-existir frente em um país racista e desigual como o Brasil.
Abordando temas que vão da cultura à política, o Ceará Crioulo vem se consolidando com uma estética negra própria, alinhando suas marcas identitárias às novas tecnologias da comunicação e informação. Esse caminho, para eles, é parte da luta pela promoção da igualdade racial na prática jornalística e publicitária e por por uma comunicação socialmente inclusiva, efetivamente sustentável e moralmente viável.
Do nordeste ao sudeste. A Alma Preto Jornalismo [11], como todos os demais, tem uma história recente. Iniciando seus trabalhos em 2015, o projeto envolveu jovens comunicadores negros universitários que sonhavam em produzir textos e pautas antirracistas. O objetivo era fortalecer as lutas e mobilizações de combate ao racismo, bem como gerar visibilidade às múltiplas identidades negras existentes no país.
“Desde então ganhamos notoriedade entre os veículos de comunicação e hoje somos uma agência de jornalismo especializada na temática racial. Assumimos um caráter político na produção de nossos conteúdos editoriais porque acreditamos que com o nosso trabalho podemos informar, dar visibilidade e potência para a voz do povo negro”, afirma o grupo em seu texto de apresentação.
Da ancestralidade ao digital
Todas essas experiências, e muitas outras já existentes no Brasil e no mundo, reformam um fenômeno em curso, que busca resgatar uma memória silenciada pela colonialidade. Culturas e modos de vidas que foram invisibilizados, hoje emergem no contexto digital com maior potencial de visibilidade e engajamento.
As filosofias ancestrais do Ubuntu e Bem Viver se conformam, nesse contexto, com elementos norteadores (para além de uma ética de vida) dos modos de fazer comunicação, das rotinas organizativas e produtivas desses cibermeios. A horizontalidade e coletividade são algumas das marcas que estabelecem esse novo formato, ainda em desenvolvimento. Muitas outras ainda estão por serem analisadas e identificadas.
De certo, temos apenas que essas novas iniciativas em comunicação e jornalismo se configuram como uma forma de elo entre o presente com o ancestral, trazendo elementos e tecnologias sociais inovadores para o campo da comunicação.
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Leia o texto anterior: Viagem no tempo?
JOII – Grupo de pesquisa em Jornalismo, Inovação e Igualdade da Universidade Federal do Piauí
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