Culturas de repetição e de evolução Disruptiva

quarta-feira, 19 janeiro 2022

Sabemos onde estão os gargalos e já tomamos as decisões. O problema está na inércia em executá-las

Feliz Ano Novo!

Entretanto, será que nossas estruturas (mentais, culturais, corporativas, educacionais, governamentais etc.) permitirão isso mesmo, um novo período de avanços incrementais, ou permaneceremos em um modo de avanço tão lento que aparentará uma repetição ou manutenção de mais um ciclo?

Já com mais de meio século e quase quarenta anos no meio acadêmico e tecnológico – desde a formação na escola técnica à docência em universidades, tendo também desenvolvido equipamentos na área médica para o setor privado -, percebo avanços tecnológicos nítidos mas não mentais ou de postura na mesma proporção. Acho, inclusive, que o primeiro está limitando estes últimos, já que ajuda a catalisar a acomodação cerebral. Falo isso no aspecto geral, não pontual! Senão vejamos: aos 14 anos (década de 80) devido ao custo e à falta de “cascalho” (pressão) para comprar um PC (necessidade), montei o meu próprio (solução), soldando resistores, capacitores, circuitos integrados e utilizando, na época, o poderoso processador Z80 de 8 bits, tendo por referência as revistas da primeira plataforma EaD que conheci, o IUB, Instituto Universal Brasileiro, e tudo por iniciativa própria. Pode parecer exagero de minha parte, mas quantos de vocês confiariam hoje ferramentas simples a um garoto de 14 anos, seja para trocar o vedante de uma torneira ou consertar a tábua de uma cama com martelo e pregos? Vivi essa experiência recentemente em minha casa, com meus filhos.

Será que além de não promovermos avanços incrementais, o que eu chamo de cultura de evolução ou de geração de conhecimento, ainda estamos involuindo, como o conversado em A Era da Deformação Antenada? A culpa é nossa, claro. Então, ao que podemos atribuir isso?

Alguns exemplos profissionais

Voltando à eletrônica! Em conversa com colegas sobre os cursos de engenharia eletrônica, o que pra mim não foi surpresa, confidenciaram-me que um ou outro estudante, ou melhor, bacharel em eletrônica, conseguiria projetar e montar uma fonte de alimentação simples, requisito obrigatório para que eu pudesse concluir o penúltimo período da escola técnica de minha infância. Em pleno 2021, alunos dos cursos de engenharia mecânica saem sem o conhecimento de usinagem utilizando CNC ou impressão 3D, uma vez que a maioria das universidades insistem em passar, unicamente, o manuseio de tornos, quando as empresas já consideram isso um método arcaico. Em conversa recente com amigo contador, que estava selecionando candidatos para sua empresa, perguntas sobre conceitos simples, como o cálculo de ativo e passivo, derrubaram a maioria dos pretendentes. Programar qualquer aplicativo da área (BI, Data Science etc.) nem pensar. Outro colega e médico, ratificou: raro é o residente que saiba aplicar uma injeção. No tempo dele, o batismo era feito em campo (campo mesmo, zona rural) e tinham que se virar com o que havia à disposição, o que variava entre injeções comuns a eventuais partos. Nas áreas humanas, assistentes sociais que não sabem indicar direitos e benefícios aos cidadãos e administradores com aversão a matemática, resposta que ouvia dos estudantes que pediam transferência do curso que eu cordenava, Sistemas de Informação, para a Administração. Qualquer gerência doméstica exige planilhas simples, nem que seja ao celular. Portanto, não é a falta de tecnologia…

Memória e repasse

Sabe porque envelhecemos? Vou começar com uma analogia: pegue um scanner e faça a cópia de um documento; uma conta de luz serve. Pegue essa cópia e faça outra. Repita esse processo umas 10 vezes. Ao final, compare a conta original com a 10ª cópia. Não preciso dizer que a última cópia parecerá um documento antigo, quase ilegível. Em outras palavras, houve perda de informação já que nenhuma cópia é perfeita. Assim acontece com nossas células: o processo de cópia biológico inclui perda de informação, por isto a cópia da cópia… da cópia de nossas células é um trajeto degenerante. Pelo menos, até onde sabemos. O que tem isto a ver com nosso mindset, GBB San?

Em minha concepção, a evolução humana se dá, basicamente, por processos de memória e comunicação: observe, experimente, registre o que deu certo e errado, opte pela melhor solução e repasse esse registro. O errado, obviamente, não pode ser descartado; do contrário, poderá ser repetido. Às vezes esse mesmo “errado” pode ter sido um falso fracasso, e o “certo” uma condição positiva temporária. Não sou especialista no assunto, mas acredito que é assim que criamos e estabelecemos uma cultura. A partir dela, podemos reforçar procedimentos, aprimorá-los, combinar coisas etc., e dotar pessoas com capacidade de repassá-las da melhor forma possível, deixando claro que os pupilos de qualquer tipo de organização (Academia [.EDU], Mercado [.COM], gestão pública [.GOV]) terão a obrigação de superar seus mentores (também de qualquer tipo de organização) e promover a evolução do que já foi feito, para que possam surgir melhores práticas – mais eficientes e mais escaláveis -, de modo a manter o mundo cada vez mais sustentável. Pronto: criou-se a estrutura escola (em um aspecto amplo, também dentro de quaisquer organizações), detentora e repassadora de registros humanos, bons e ruins. O aprimoramento do que foi repassado caberá à nova geração formada. Posso dizer que o avanço proporcionará conhecimento que impulsionará o mundo à frente.

Processos de Repetição

A manutenção ipsi literis do que fora feito não gerará conhecimento. Assim, além de não ser uma estagnação, corresponderá a um retrocesso cultural quando comparado à pressão evolutiva, que se move pra frente e impõe novas necessidades por conta do crescimento populacional, do aumento da competitividade entre pares, da redução de postos a serem ocupados (iguais, por sinal) e esgotamento dos recursos existentes. Raros são os mentores de organizações atuais com a postura autopropelida (para não usar empreendedora) em atualizações contínuas. Resultado, passarão adiante a mesma informação que receberam, transformando as estruturas que habitam em máquinas de repetição e, consequentemente, promotoras de involução, quer seja na .COM, no .GOV e, principal e infelizmente, na .EDU.

Cultura de evolução: memória, aprimoramento e repasse

Voltando ao exemplo lá de cima, imagine um mecanismo de correção celular preditivo. Uma célula que, antes de se replicar, alertaria sua cópia: “A informação original era essa. Tente não perdê-la ou, de preferência, procure melhorá-la!”. Bom, se (ou quando) a engenharia genética atingir este ponto, além de não envelhecermos, não mais adoeceremos; um tipo de clonagem inteligente e auto-evolutiva. Neste Gedankenexperiment (experimento mental), a célula mais antiga teve uma postura empreendedora. A mais nova terá de ser inovadora. Mantida essa corrente, a 10ª cópia será uma super versão da original. Bacana, né não?

Admitamos esse processo de clonagem inteligente de conhecimento implantado como cultura em todas as organizações. Imediatamente, começaríamos a eliminar ou reduzir os exemplos profissionais citados acima. Olha aqui, gestor júnior: tentamos isto na gestão passada e deu m* (“m” de murchou)! Nossa empresa fez isto e quase beijamos o caixão. Ôh estudante: saiba que o Mercado não usa mais tornos, você tem de saber aplicar injeções, a matemática é fundamental na administração e a população precisa ser orientada sobre direitos e benefícios. Parece óbvio, mas não está acontecendo. Esse é o tipo de informação que também precisa ser “escaneada” e estampada, junto ao conhecimento antigo, à cultura previamente estabelecida. Bom, e se você encontrar um torno pela frente? Saber operá-lo dará respaldo para sugerir a aquisição de um CNC, uma impressora ou uma máquina qualquer, pois você conseguirá sustentar qualquer tese, mostrando que melhores ganhos virão em médio ou longo prazo. Se uma injeção foi mal aplicada, você saberá porque! Alguém está sem benefício, como? Olhe aqui o site. Um ditado africano diz: “Você aprende a cortar árvores cortando”. Estamos criando uma geração sem ao menos dizer a ela que existe um machado.

Acredito que a busca por soluções e a consequente evolução individual dependem apenas de dois fatores: pressão, já exposta no processo de repetição como necessidades, e oportunidade, que indicará o tipo de auto-atualização a ser perseguida. Quando um destes fatores não está explícito, cria-se uma geração “fofa”, sem objetivos. Acho que estamos nela.

Finalizando…

No contexto cultural, todo processo de repetição leva à criação de estruturas de involução. Assim está hoje a maioria de nossas corporações, seja o .GOV, a .COM e, lastimavelmente, a .EDU. Toda geração ulterior tem sempre que evoluir e não fomentar processos de escaneamento simples, acarretando perda de informação e envelhecimento do conhecimento. Inexorável e irreversivelmente, o mindset dos pupilos de qualquer organização tem de ser ativado, ou melhor, ser incentivado a auto ativar-se de modo diferente, estimulado não apenas a repetir os processos registrados (ou produzidos) pelos mentores, o que exigirá também destes últimos um mindset empreendedor de auto-atualização, o já batido Lifelong Learning, para saber como o mundo está girando e passar a informação preditiva aos pupilos. Apontar para esses, pelo menos, onde está o machado ou como diminuir os calos nas mãos. Como comentado no link da AC sobre deformação antenada, a impressão que tenho é que estamos decaindo.

Respondendo à pergunta sobre culpa, sabemos onde estão os gargalos e já tomamos as decisões. O problema está na inércia em executá-las. Um ano novo, uma vida nova, uma árvore bem cortada, dependerão da postura e dos processos que executarmos daqui para frente. Eu sugiro os de evolução. Do contrário, Feliz Mesmo Ano!

Referência:

Tmed (https://www.tmed.com.br/)

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Leia a edição anterior: Final de ano com as melhores AC

Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Gláucio Brandão

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