Consumo de maconha na gestação: O que sabemos? Biologia do Envolvimento

sexta-feira, 18 outubro 2019

Alterações da função de receptores canabinóides durante a gestação causam efeitos, mas as pesquisas ainda esbarram em preconceito

Todos nós que acompanhamos as notícias sabemos que o processo de legalização do uso da maconha medicinal, e até mesmo para recreação, está em expansão. Em poucos anos ouvimos sobre novas cidades, estados e países que criaram suas regras de uso. Não dá para prever ainda o quanto a legalização vai levar para chegar no Brasil, mas o fato é que parece cada vez mais ser um processo inevitável. Antes mesmo da legalização, algumas pesquisas mostram que algo entre 5 e 15% da grávidas consomem maconha durante a gravidez. Se vamos em breve começar a ter uma nova relação com a planta, que ela seja a mais saudável possível. E para uma relação saudável meus caros, precisamos de informação. 

Qualquer um que quiser saber o padrão de expressão de um gene em um embrião de camundongo hoje em dia pode ir ao Allen Brain Atlas e rapidamente descobrir. Pois bem, foi o que eu fiz para mostrar a vocês o padrão de expressão de um dos principais receptores de canabinóides que temos, o CB1 (vejam a foto, o focinho está apontando para a esquerda). Nesta foto de um corte da cabeça de um embrião de camundongo, logo vemos que praticamente toda a extensão do cérebro e medula estão pintados de roxo. Isso quer dizer que todas estas células em roxo contém o RNA mensageiro do receptor CB1. Assim, o cérebro em desenvolvimento possuí muitas células que potencialmente respondem ao estímulo por canabinóides. Mas que tipo de respostas são geradas por este estímulo?

Foto de um corte da cabeça de um embrião de camundongo.

No sistema nervoso adulto, a ativação de CB1 leva à inibição da liberação de outro neurotransmissor. Assim, quando um neurônio tem uma sinapse ativada, que vai ser fortalecida, o mesmo pode sinalizar para outros neurônios inibidores de sinapse (através de um dos endocanabinóides, produzidos dentro do nosso corpo) para deixarem de liberar seus neurotransmissores. Acontece que também no desenvolvimento embrionário existe um tipo primitivo de sinalização por neurotransmissores. Células tronco neurais, neurônios e glias jovens respondem a neurotransmissores alterando seu padrão de divisão celular, migração e até sua diferenciação. De fato, já foi mostrado que a alteração da sinalização por endocanabinóides causa mudanças na divisão de células, diferenciação de neurônios e a extensão de conexões entre eles. Apesar de afetar diversos fenômenos que acontecem durante o desenvolvimento, até agora não foi encontrada qualquer correlação entre o uso de canabinóides na gestação e a ocorrência de malformações. Esse fato torna-se especialmente interessante frente ao efeito teratogênico conhecido de algumas das drogas antiepilépticas mais prescritas, como o ácido valpróico e a carbamazepina. Os efeitos antiepilépticos de extratos de maconha são justamente o maior consenso entre especialistas em maconha medicinal. Mas o fato de não gerar malformações não quer dizer que o uso de canabinóides durante a gestação seja inócuo. O que estes trabalhos mostram é que os efeitos causados pelo distúrbio da sinalização de canabinóides na gestação são microscópicos, e por consequência, difíceis de detectar em humanos.

Apesar das alterações no desenvolvimento do cérebro serem microscópicas, elas tem consequências para o seu funcionamento e curiosamente dependem do sexo do embrião. Em trabalho publicado no fim de 2018, Anissa Bara e seus colaboradores mostraram que se dermos drogas que ativam CB1 diariamente e durante praticamente toda a gestação de camundongos, acabamos alterando o comportamento social dos machos, já quando adultos. Estes animais (não todos, mas na comparação entre os dois grupos) apresentam menor interesse por outros camundongos. Este efeito é reversível se inibirmos a atividade da enzima que degrada o endocanabinóide anandamida (aumentando assim sua quantidade no cérebro). Este experimento não foi conduzido com extratos de maconha, mas sim com THC puro ou com a droga sintética que ativa CB1 WIN55,212-2. Assim, as alterações microscópicas causadas podem ter consequências no comportamento de animais. Os efeitos são especificamente mais perigosos sobre a gestação de machos e, aparentemente, são reversíveis.

Um segundo trabalho nos traz algumas pistas sobre por que o efeito é específico sobre embriões machos. Em artigo publicado esta semana, Roberto Frau e seus colaboradores deram THC também diariamente e durante toda a gravidez, mas em ratos. Eles observaram que os machos tratados apresentavam alterações na atividade sináptica de uma região importante para a motivação e a sensação de recompensa. Esta área é afetada por drogas que causam abuso, alterações em seu funcionamento estão associadas ao vício. Os animais tratados com THC na gestação se arriscam mais em um tarefa que testa comportamentos impulsivos. Além disso, seus cérebros produzem mais dopamina e eles são mais sensíveis a uma única dose de THC quando adolescentes. Mas o mais interessante para nossa discussão foi que eles encontraram que os efeitos de THC durante a gravidez sobre os circuitos e o comportamento dos machos podem, pelo menos parcialmente, serem revertidos pelo tratamento com pregnenolona, por nove dias durante a transição entre a infância e a adolescência do rato (que são fases bem rápidas nessa espécie). A pregnenolona é um esteróide com efeitos sobre o sistema nervoso. Ela pode tanto ser convertida em outros esteróides, como o estrogênio, e assim contribuir para a sinalização hormonal, como pode modular a atividade de neurônios agindo diretamente sobre a neurotransmissão. Mais interessante, ela pode inibir a ativação de CB1 por THC. Frau e colaboradores mostraram que se inibirem a conversão de pregnelonona em estrogênio o efeito de resgate permanece, mostrando que é o seu efeito como neuroesteróide que está envolvido no resgate do fenótipo. Pouco sabemos sobre diferenças encontradas na expressão de neuroesteróides durante o desenvolvimento embrionário de machos e fêmeas. Mas este trabalho indica que talvez a explicação do efeito específico de canabinóides sobre machos esteja nesse caminho. 

Reunião da diretoria colegiada da Anvisa. Foto: Divulgação.

Alguns estudos clínicos em humanos mostram que pacientes expostos a canabinóides durante a gestação são predispostos à alterações psiquiátricas e no seu comportamento. Mas o quanto os dados em humanos encontram um paralelo nos experimentos animais? Os dois trabalhos deram 6 e 2 mg de THC por quilo do corpo do animal, respectivamente. Em entrevista recente para o podcast do Stevens Rehen, Katiele Fischer, mãe de paciente usuária de maconha medicinal, disse que controla as crises da sua filha com doses de 6 mg/kg. Parece claro então que se compararmos a quantidade de canabinóides em 6 mg de extrato de maconha e 6 mg de THC puro, o segundo tratamento está muito mais forte. Seriam então as doses utilizadas nesses artigos relevantes para entendermos o que acontece na exposição em humanos? Mas o problema para chegarmos a uma comparação mais relevante não está só no desenho dos experimentos em animais. O problema também está nas leis. Se um cientista resolver estudar o sistema canabinóide hoje em dia, ele vai encontrar muito mais facilidade em comprar drogas sintéticas que atuem sobre os receptores do que usar maconha. Qualquer cientista que faça experimentos com maconha em seu laboratório no Brasil hoje em dia pode ser preso.

A Anvisa está discutindo a regulamentação da produção, plantio e transporte de maconha medicinal por empresas farmacêuticas (a discussão foi suspensa por duas semanas para pedido de vista). O texto prevê a autorização para o cultivo por instituições de pesquisa, desde que contemple mais de um projeto por intuição. A aprovação desta medida seria um grande avanço sobre uma legislação que nada tem de científica. Ativadores sintéticos dos receptores canabinóides são muito mais potentes do que extratos de maconha e curiosamente muito mais facilmente obtidos para pesquisa. A falta de informação (leia-se a proibição sobre a pesquisa) só contribui para a formação de preconceitos, sobre a planta e seus usuários. E já está na hora de colocarmos estas ideias atrasadas onde elas merecem, no passado.

Nós estamos nos preparando para começar estas pesquisas no Instituto do Cérebro e eu estou abrindo uma vaga para começar o mestrado em 2020. Se você se interessar no tema canabinóides e desenvolvimento embrionário (fazendo experimentos em animais), me procure em ebsequerra@neuro.ufrn.br .

Referências:

Allen Brain Atlas (https://developingmouse.brain-map.org)

Artigo Anissa Bara e colaboradores (https://elifesciences.org/articles/36234)

Artigo Roberto Frau – Nature (https://www.nature.com/articles/s41593-019-0512-2)

Entrevista Katiele Fischer ao podcast de Stevens Rehen (https://revistatrip.uol.com.br/trip-cast/katiele-fischer-e-fabricio-pamplona-debatem-maconha-medicinal-e-o-potencial-terapeutico-da-cannabis)

 

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Leia o texto anterior: O estudo do cérebro de assassinos como ferramenta de eugenia

Eduardo Sequerra

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