A atualidade do pensamento de Steve Biko, o ativista negro da África do Sul que continua inspirando movimentos contra o racismo em todo o mundo – Parte 2
Para combater o poder branco de base racial, um poder tão abrangente e tão entranhado nas subjetividades dos grupos que oprime, a Consciência Negra defende a negritude como tomada de consciência política e engajamento coletivo na luta pela construção de condições “para a total expressão do ser em uma sociedade que se transforma livremente conforme a vontade do povo[1]”.
Um momento incontornável dessa construção da negritude como consciência política é a reescritura da história das negras e dos negros, pois – como já tinha mostrado Frantz Fanon, de quem Steve era ávido leitor – “os colonizadores não se satisfizeram apenas em manter um povo em suas garras e esvaziar a mente dos nativos de toda forma e conteúdo, mas se voltaram também para o passado do povo oprimido e o distorceram, desfiguraram e destruíram[2]”. Aquilo que – não só na África do Sul do apartheid, mas em todas as sociedades ainda estruturadas por lógicas coloniais de produção de subjetividades e organização das relações sociais, como a brasileira contemporânea – muitas vezes é apresentado no sistema educacional formal, nos ambientes acadêmicos e nos sistemas midiáticos como “conhecimento histórico” não passa de uma história única construída pelo branco (e vendida como um conjunto de “verdades históricas”) para subjugar as mentes, direcionar as aspirações e determinar os parâmetros de julgamento dos negros sobre eles mesmos: “Não é de estranhar que a criança africana – poderíamos acrescentar: a criança negra brasileira – aprenda na escola a odiar tudo o que herdou. A imagem que lhe apresentam é tão negativa que seu único consolo consiste em identificar-se ao máximo com a sociedade branca[3]”.
Biko reivindicava e necessidade – ainda hoje, em toda a África negra e aqui na América Latina, mais do que urgente! – de empreender pesquisas históricas contra coloniais que construam uma nova história para os oprimidos, proporcionando-lhes outras referências e estimulando-os a pensarem em si mesmos a partir de critérios e pressupostos de cuja elaboração seja partícipes, com base uma nova consciência de seu passado. Isso levaria os negros a perceberem em suas culturas nativas “muitas virtudes positivas que deveriam servir de lição para os ocidentais[4]” e os incentivaria “a julgarem a si mesmos de acordo com esses padrões e a não se deixarem enganar pela sociedade branca, que absolve a si mesma e faz dos padrões brancos a medida pela qual até os negros julgam uns aos outros[5]”.
Steve propunha uma africanidade transformadora e solidária, defendendo – entre os valores positivos que pesquisas históricas não colonizadas iriam recuperar – que uma característica comum à maioria das culturas africanas era considerar o humano como um fim em si mesmo, ao invés que como instrumento para a produção de valor e a acumulação de riqueza como na modernidade ocidental, e que, por isso, “nossa ação em geral é uma ação comum, mais orientada para a comunidade solidária do que para o individualismo, que é a marca registrada da abordagem capitalista. Sempre evitamos usar as pessoas como degraus para subir. Em vez disso, estamos dispostos a um progresso muito mais lento, num esforço de garantir que todos caminhemos no mesmo ritmo[6]”. Reescrever a história é, assim, um ato político de definição de novos critérios de produção de subjetividades negras, e oprimidas em geral, e de instituição das contribuições positivas dos grupos subalternizados à construção de uma humanidade e de um mundo comuns.
Reescrever a história como movimento contra colonial de construção de consciência política significava também, para Biko, romper com a tendência de considerar a cultura dos grupos oprimidos como estática, detida com a chegada dos colonizadores e que desde aquele momento não teria se modificado. Significava mostrar ao mundo que existem culturas negras contemporâneas, que apesar de só terem podido se modificar nos moldes e nos ritmos determinados pela cultura branca dominante e no agenciamento forçado com esta, produziram elaborações próprias de princípios ancestrais e elementos emersos em diferentes fases históricas. Significa, portanto, afirmar que a transformação cultural não é prerrogativa do branco – o único humano que se acha produtor de “história” – e que “a cultura negra implica a nossa liberdade de inovar sem recorrer aos valores brancos[7]”.
Só com a ruptura, por parte dos negros, das correntes psíquicas e epistêmicas impostas pela branquitude, com a unificação dos grupos oprimidos pelo dispositivo da raça, com a autodefinição de si, das próprias prioridades e das próprias estratégias de luta, com a reescritura da própria história e uma multiplicação das histórias que anule os efeitos da história única – instituída em “história oficial” pelo controle branco da ciência – será possível, afirma Biko, estabelecer um verdadeiro diálogo, uma autêntica cooperação e uma mistura entre as humanidades que o colonialismo dividiu e hierarquizou. Não uma “integração” das humanidades inferiorizadas nos valores, as estruturas e os modos de vida da humanidade dominante, mas a coparticipação no poder e a coprodução de valores, modos de vida e relações sociais. Citando a dialética filosófica elaborada pelos próprios brancos, resume Biko: Para os liberais, a tese é o apartheid, a antítese é o não racismo, mas a síntese é muito mal definida. (…) A Consciência Negra, no entanto, define a situação de maneira diferente: a tese na verdade é um forte racismo por parte do branco e, portanto, a antítese precisa der, ipso facto, uma forte solidariedade entre os negros, a quem esse racismo branco pretende espoliar. A partir dessas duas situações, então, podemos ter a esperança de chegar a algum tipo de equilíbrio – uma verdadeira humanidade, onde a política de poder não tenha lugar[8].
A Consciência Negra, portanto, não é e nunca foi fechamento identitário, como seus críticos brancos alegam para deslegitima-la, mas fator catalizador e unificador de lutas de oprimidos e força propulsora de transformações socioepistêmicas, visando a superação – nunca o fortalecimento! – da racialização dos humanos. Na introdução à coletânea de escritos de Steve publicada após seu assassinato, Nyameko Barney Pityana – ativista anti-apartheid e um dos fundadores da Organização de Estudantes da África do Sul – lembra que Biko, ao passo que defendia a organização e a ação política autônoma dos negros, nunca se negou ao diálogo construtivo com brancos liberais e radicais, tornando-se amigo de vários deles. Não deixa de ser uma trágica confirmação de sua lúcida compreensão do poder racista o fato de que, para que seu assassinato comovesse a opinião pública internacional e suas ideias ganhassem repercussão mundial não só entre ativistas negros, tenha sido necessária – mais uma vez! – a “chancela” de brancos com “legitimidade” de fala: o jornalista e amigo que investigou e denunciou os crimes que resultaram em sua morte, o cantor inglês que imortalizou seu nome e o diretor britânico que transformou sua história em filme.
A perspectiva da Consciência Negra recebeu algumas críticas, ao longo dos anos, no âmbito do pensamento emancipatório. Uma delas, recente, aponta para a interpretação – eu diria a captura – neoliberal à qual se presta e que vem sendo explorada nas últimas décadas pela configuração atual do capitalismo na África do Sul e em outros países. Espero que o que mostrei nas duas partes desde artigo tenha deixado claro que nada está mais distante do pensamento de Biko do que a ideia de empoderamento como processo individual de autoaceitação que transforma a negra e o negro em nichos de mercado. A Consciência Negra, como vimos, é o reconhecimento de que existe um opressão assentada no dispositivo da raça que acomuna grupos subjugados pelo poder branco e da necessidade de se engajar de maneira coletiva – pois a opressão sofrida é coletiva – na desconstrução dos mecanismos que a produzem e alimentam. Quando Steve pensava o empoderamento econômico das comunidades negras, por meio da construção de estruturas de produção e de mercados de negros para negros, não visava uma inserção dos grupos oprimidos na lógica de acumulação capitalista, seja porque a defesa da criação de mercados e de empresas negras era acompanhada pela de modos de produção e de circulação comunitários (para evitar o que acontece hoje em seu país natal: a ascensão de uma elite econômica negra que recria desigualdades e explorações de classe), seja porque esse empoderamento era concebido como um momento estratégico da construção de condições materiais para a autoconsciência e a autoafirmação coletiva dos negros.
Outra crítica que foi movida à Consciência Negra é a de não possuir um programa político claro e de não apresentar estratégias de luta definidas. Mas, como mostra Nyameko Barney Pityana, nunca foi o que o movimento se propôs. O que ele quis foi ser uma força mobilizadora: Se estivermos unidos na ação – afirma Pityana ao apresentar as ideias de Steve uma década depois de seu assassinato – a solidariedade será construída e (…) nenhuma causa, nenhum dano, nenhum ato de desprezo pessoal seria suficiente para nos afastar do objetivo fundamental de conquistar a nova África do Sul[9]. A Consciência Negra é uma potência de transformação, um agenciador de subjetividades não colonizadas, não um programa político. Como sintetiza ainda Pityana: O essencial da Consciência Negra é possibilitar e intensificar a participação do povo nas próprias lutas[10].
A crítica que, a meu ver, é mais pertinente é a da Consciência Negra não ter articulado, em suas análises da opressão sofrida pelos negros, a dimensão do gênero; a de não ter se debruçado sobre como o binarismo do patriarcado colonial imposto pelo poder branco agia e age sobre a produção de subjetividades negras e sobre a organização das relações de gênero no interior dos grupos oprimidos e entre estes e o grupo dominante; de não ter focado nos modos de intersecção entre dinâmicas racistas e patriarcais na configuração das condições e possibilidades de existência das mulheres negras e dos demais grupos racializados, assim como na importância da união das mulheres negras em organizações e ações independentes dos homens como parte da transformação das estruturas opressoras. Uma ausência relevante que não tem desculpas, mas que ainda assim não retira da Consciência Negra seu imenso poder agenciador de união entre oprimidos e de autoprodução coletiva de negras e negros como sujeitos transformadores completos em si mesmos, que influenciou de forma significativa – influência teórica e política reconhecida – o próprio feminismo negro de várias latitudes. Tanto é assim que os movimentos estudantis feministas atuais da África do Sul estão usando Biko como um dos seus símbolos e referências.
A Consciência Negra é uma atitude da mente e um modo de vida, o chamado mais positivo que num longo espaço de tempo vimos brotar do mundo negro. Sua essência é a conscientização por parte do negro [e da negra] da necessidade de se unir a seus irmãos [e suas irmãs] em torno da causa de sua opressão – a negritude de sua pele – e de trabalharem como um grupo para se libertarem dos grilhões que os prendem a um servidão perpétua[11], sintetiza Biko. É por isso que ela continua seminal, na África do Sul e onde quer que grupos racializados continuem oprimidos pelo poder branco colonial. Ela é indispensável, mais do que nunca, no Brasil de hoje.
Deste lado do Atlântico, as cidades segregadas da África do Sul de um tempo se atualizam todo dia na cisão urbana entre morro e asfalto e nas estruturas urbanísticas e arquitetônicas (grades, arames, cercas elétricas, guaritas, muros de condomínios fechados, elevadores “de serviço”, “quartos da empregada”, etc.) da discriminação. “Leis de passe” informais, com seus respectivos seguranças armados, determinam com base na cor da pele quem pode ter acesso a espaços – inclusive públicos – de privilégio. As favelas, territórios autogovernados dos quais todos os serviços públicos estão ausentes ou têm qualidade para lá de inferior aos proporcionados pelo estado nos bairros “nobres” (leia-se, brancos), são os nossos “bantustões”… e, como na África do Sul de um tempo, os territórios dos grupos racializados, explorados e segregados sofrem o tempo todo invasões militares, vidas negras não valem nada e a qualquer momento, sob qualquer pretexto, podem ser ceifadas. Parafraseando Haiti, de Cateano: O apartheid é aqui, o apartheid não é aqui. Não é aqui como sistema de segregação legal; é aqui como lógica de opressão de base racial.
É por isso que, no maior país negro fora da África, precisamos como nunca de pensamentos como o de Steve Biko, precisamos como nunca da Consciência Negra. Uma chama que vai continuar a arder e se espalhar, pois, como conclui a canção Biko de Peter Gabriel:
You can blow out a candle
But you can’t blow out a fire
Once the flames begin to catch
The wind will blow it higher…
“Podem apagar uma vela, mas não podem apagar o incêndio. Quando as chamas começam a pegar, o vento vai soprar mais alto”.
Yihla Moja…
A coluna Diversidades é atualizada às segundas-feiras. Ouça, opine, compartilhe e curta. Use a hashtag #Diversidades. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br).
Leia a coluna anterior: Yihla Moja… Sigamos em frente!
Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Antonino Condorelli
“Só com a ruptura, por parte dos negros, das correntes psíquicas e epistêmicas impostas pela (branquitude)..branquitude não seria uma forma de preconceito ou discriminação?
– e se os “brancos” se mobilizassem e fizessem movimentos de consciência branca ..seria nazismo?
-SOU NEGRO E ESSES MOVIMENTOS NÃO REPRESENTA OS NEGROS DAS FAVELAS ..DO CHÃO DAS FÁBRICAS…POIS A MAIORIA SÃO INTOLERANTES A PENSAMENTOS CONTRÁRIOS;
-NÃO DEVEMOS LUTAR POR CONSCIÊNCIA E SIM POR EDUCAÇÃO DE QUALIDADE, POIS 70% DOS ESTUDANTES DE ESCOLAS PÚBLICAS SÃO NEGROS E É NA EDUCAÇÃO E ENSINO DE QUALIDADE QUE ESTÁ A VERDADEIRA LIBERTAÇÃO DO POBRE !!!NEGRO OU BRANCO…MAMELUCO INDIO..CABOCLO E POR VAI