Neste 20 de novembro, a luta e o luto seguem constantes na vida de pessoas negras
Por Alice Andrade
Devo iniciar este texto com uma confissão a você que me lê: foi muito difícil escrever hoje, em pleno dia da consciência negra. Apesar de apreciar dialogar sobre esse tema quando posso, hoje a exaustão me tomou. Temos sido resistentes há séculos e reinventado a resistência de diversas formas. A escravização acabou enquanto modo cruel de exploração do trabalho, mas o racismo segue alimentando o escambo: nossos corpos são trocados por notas de repúdio tão efêmeras quanto nossas vidas nesse modelo social.
Enquanto escrevo, lamentamos a morte de João Alberto Silveira Freitas, assassinado por seguranças em um supermercado de Porto Alegre (RS). Mais uma vida negra que se vai pelo racismo que estrutura olhares e animaliza nossos corpos. Este exercício de escrita está sendo dolorido porque, além de tudo e de tanto, o dia da consciência negra (20/11) costuma mobilizar em mim olhares em três sentidos: para o passado, para o agora e para a frente.
No primeiro caminho, enxergamos uma data que remete ao dia da morte de Zumbi dos Palmares. Ele nasceu em 1655, no território onde hoje é localizado o estado de Alagoas. Zumbi era grande guerreiro que lutou pela liberdade dos povos negros violentados pela escravização no Brasil. Foi líder do Quilombo dos Palmares, o maior do período colonial. Em 20 de novembro de 1695, aos 40 anos, Zumbi dos Palmares foi ferido e morto, tendo sua cabeça exposta em praça pública. Sua memória e legado, no entanto, seguem sendo inspiração para a resistência negra no Brasil. João Alberto, citado no início deste texto, foi morto na mesma idade que Zumbi, um dia antes do 20/11. Dia de luta, dia de luto.
Palmares foi um espaço de resistência e luta pela libertação dos povos negros escravizados no país, os quais chegavam até lá após fugirem das fazendas, prisões e senzalas. De modo sintético, os quilombos eram comunidades autossustentáveis que ofereciam acolhimento e resistência coletiva às múltiplas violências sofridas pelos povos negros.
É importante lembrar que esses povos foram trazidos forçadamente em diáspora para serem subalternizados, espoliados, desumanizados, açoitados, violentados, escravizados e mortos. Tudo isso teve fim (?) há apenas 132 anos, o que torna acentuados os traços da colonialidade. Um fim questionável, visto que deixamos de ser uma sociedade escravagista e passamos a ser uma sociedade escravocrata. Mesmo na contemporaneidade, o racismo estrutura o país em uma edificação podre que desaba em nossas cabeças diariamente. A mesma mão branca que puxava o chicote, puxa também o gatilho.
A simbolização do 20/11 é uma reivindicação do movimento negro desde a década de 1970, embora a data só tenha sido sancionada em lei em 2011 – lenta como todos os processos históricos que tentam reparar as dívidas impagáveis com os povos afrobrasileiros. Enxergar esse recorte da história negra no Brasil nos mostra que nossos ancestrais nunca foram indolentes ao processo de escravização, como muitas vezes dizem. Ao contrário, são exemplo de união, resistência e construção política coletiva.
Então vamos ao segundo caminho: olhar para o agora. Esse é mais um motivo da minha exaustão neste dia. Em pleno 20 de novembro, o presidente brasileiro afirmou que “O Brasil tem questões mais complexas do que problemas raciais” e “Sou daltônico: todos têm a mesma cor”. Enquanto isso, o vice-presidente da República disse que “não há racismo no Brasil”. Do alto da Casa Grande talvez eles não consigam ver (é daltonismo ou miopia?), mas aqui as balas de armas do Estado parecem ter a visão bem mais seletiva: 75% dos mortos pela polícia são negros. Entre as vítimas de feminicídio, 61% são negras. A cada 100 mil habitantes, 200 homens negros, dos 19 a 24 anos, são mortos. Aqui, o racismo estrutural faz negros ganharem, em média, R$1,2 mil a menos que brancos. Mulheres negras têm o dobro de chances de não receber anestesias em partos que uma mulher branca. Também é no Brasil onde os assassinatos de negros crescem 11,5% em 10 anos. A população presa é predominantemente composta por pretos e pardos (65%). Essa negação do racismo é a institucionalização da necropolítica.
Tais falas me fizeram lembrar que em 1980, na página 107 do livro “O genocídio do negro brasileiro – processo de um racismo mascarado”, Abdias Nascimento escreve: “Com todo esse cortejo genocida aos olhos de quem quiser ver, ainda há quem se intitule de cientista social e passe à sociedade brasileira atestados de “tolerância”, “benevolência”, “democracia racial” e outras qualificações virtuosas dignas de elogios. Certo: que os serviçais da ideologia dominante continuem exercendo sua perversão da realidade. Cumpre a nós, os negros, que em vários estados somos a maioria da população (…) conceder a essa qualidade de estudos e estudiosos o que eles merecem: o nosso desprezo”. (Grifo meu).
Ah, Abdias. O cortejo genocida segue nas avenidas coloniais de um Brasil que às vezes parece não ter saído moralmente do lugar. Aos olhos de quem quiser ver, multiplicados pela “viralização” em smartphones de quem filma e compartilha enquanto se omite nas ações, a perversão – e a perversidade – da realidade ainda são constantes. Nosso desprezo segue mais forte do que nunca. Aqui também lembro de Frantz Fanon, que em “Pele negra, máscaras brancas”, reflete: “Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor… Aqui ou ali, sou prisioneiro do círculo infernal” (2008, p.109). Vivemos em um círculo infernal de mentes quadradas que fecham os olhos para as violências estruturais.
Apesar de tudo, ainda há o terceiro caminho: olhar para frente. O que se pode esperar do futuro? Se esperança é sentimento humano, enquanto não rompermos com as lógicas que tentam nos subalternizar e desumanizar, não poderemos esperançar completamente. Há, entretanto, algo importante a recordar: os povos negros resistem há séculos. Por mais cansativo que seja se deparar com o racismo cotidiano e suas minimizações (como o fato de que um vidro quebrado é exagero, mas um corpo negro assassinado é justificável), não é agora que vamos esmorecer. Conforme o professor Jones Manoel (@_makavelijones), creio que ser negro no Brasil significa conviver com um medo constante. Porém, embora o medo nos seja até mesmo uma estratégia de sobrevivência, não somos paralisados. Nós sabemos: somos descendentes de reis, rainhas e guerreiros. Somos continuidade daqueles que resistiram aos tumbeiros. Somos fruto da resistência dos quilombos. Somos porque foram. É por isso que devemos continuar sendo, resistindo e lutando por uma sociedade antirracista, socialmente justa e diversa.
Eu não diria que devemos “superar” essa situação, pois tenho aversão à palavra “superação”. Tanto por uma questão léxica, pois é comumente usada para justificar o mito da meritocracia; quanto por uma situação pessoal que narro brevemente a seguir. Após anos vivenciando uma situação de violência simbólica e racismo, rompi com o ciclo. Mas a dor das marcas deixadas em mim não se dissolve, nem se dissolveu, tão facilmente. Decidi canalizar minhas energias na escrita de pequenos contos publicados no Instagram. Até que uma pessoa branca me disse: “você é muito má ao escrever tudo isso, precisa superar essa situação”. Ela implorou para que eu “superasse” e parasse de escrever para transmutar minha dor em palavra, pois minha escrita incomodava o agressor (por mais que não fosse citado nominalmente). Em outra situação, lembro, ainda, de ver comentários completamente bem intencionados em notícias sobre a morte de Miguel, Ágatha e João Pedro, afirmando que em breve a família iria “superar”. Não questiono a intenção. Questiono o efeito.
E se “superar” não for uma boa definição para o que precisamos? E se precisarmos criar nossos próprios parâmetros e perspectivas de existência? E se as cicatrizes deixadas forem necessárias para não permitirmos – a nós e ao mundo – que a causa delas se repita? Precisamos, sim, falar sobre racismo e a respeito das violências que acometem pessoas negras, pois não há solução sem problematização. Negar o racismo, ainda mais através de figuras institucionais importantes, é retroalimentar a lógica de uma violência sistêmica contra pessoas negras, o genocídio. No dia da consciência negra – e cotidianamente – devemos refletir sobre qual lugar social ocupamos na luta antirracista, pois essa não é uma batalha exclusiva de pessoas negras. Mesmo que alguns brancos não concordem com o racismo e reconheçam os privilégios sociais que têm por causa da pele clara, enquanto grupo social são signatários de um sistema que subalterniza corpos, sonhos e mentes. Por essa razão, também devem pensar – e agir – contra o racismo.
Ao olhar para o futuro, finalmente, enxergo a potência na nossa coletividade. Somos raízes de uma árvore que afundam no solo fértil semeado pelos quilombolas. Com o conceito de Dororidade, Vilma Piedade nos ensinou que podemos nos reconhecer na dor. É por isso que tantas vezes nos sentimos igualmente cansados(as/es). A historiadora Beatriz Nascimento enxergou o quilombo como um espaço, mas também como uma ideologia no sentido da agregação. Assim, olhar para frente é reconhecer que nossas dores e vitórias são compartilhadas e que a resistência ao que nos dilacera brota das sementes da co-construção.
A filósofa Djamila Ribeiro destaca a importância de pessoas negras romperem com o silêncio, em especial por vivermos em um país de maioria negra e, mesmo assim, não nos vermos enxergados nos espaços. Falar é exercer a humanidade que historicamente nos é negada. Construir nossas próprias narrativas é fundamental para quebrar a exclusividade da escrita do outro sobre nós. Somos mais do que capazes de escrever (e reescrever) nossa própria história com protagonismo, com nossos modos de sentir, com nossa linguagem. Questionar as consequências do racismo estrutural, principalmente em sociedades com histórico escravagista, é um dever civilizatório de todas, todos e todes. Romper com a história única, conforme alerta Chimamanda Ngozi Adichie, é imprescindível para quebrar esteteótipos que subalternizam.
Nesta despedida, a confissão que fiz no início do texto se torna um pedido de desculpas. Ainda não consigo olhar para o futuro e oferecer a você uma perspectiva mais otimista. Não conseguir respirar ainda é, simbólica e literalmente, realidade de pessoas negras. Só posso afirmar que apesar do cansaço que sinto ao estar sozinha, quando estamos em coletivo ainda sigo acreditando e esperançando.
Acredito que a consciência negra é autoconhecimento, autonomia, potência, ancestralidade, história, memória, união, ação e luta. Na dúvida para onde olhar, talvez precisemos ver os três caminhos. Se é para enxergar o passado, partilhemos as experiências. Se formos olhar para o agora, podemos gritar em uníssono. Se é para enxergar o futuro, vamos co-construir perspectivas que nos representem. Mas, independentemente do nosso ponto de foco, se for para lutar como sempre fizemos, nos inspiremos em nossos irmãos e irmãs de Palmares para lutarmos juntos (as/es).
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Leia a coluna anterior: Este é um texto de agradecimento
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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