Congelados Ciência Nordestina

terça-feira, 23 julho 2019

No momento em que a Universidade Pública praticava a inclusão, o congelamento joga os pobres para fora e abre espaço para o mercado

Há uma série de TV chamada “The 100”, que conta a história de um grupo de pessoas que sobreviveram à destruição do planeta Terra indo viver no espaço. Destes sobreviventes, 100 retornam à terra para testar as condições de sobrevivência. E eles terminam (típico de nossa espécie) por destruir o resto da natureza que se recuperou desde o último desastre. Por não ter o que comer nem onde viver, eles retornam para o espaço e decidem entrar em sono profundo, em compartimentos criogênicos onde permanecem jovens por mais de 150 anos de sono.

Fora a questão da destruição do planeta (especialidade do ser humano), tudo mais é obra de ficção. A entropia (seta do tempo) é implacável, não há como pará-la. Todavia, os governantes parecem ter assistido à série e acreditado que a ciência brasileira mergulhada em nitrogênio líquido resistiria a 20 anos de des(investimento). Algumas décadas atrás já provamos do amargo sabor de um congelamento “fake” de alimentos e combustíveis em meio a uma hiperinflação. Lembramos bem que não funcionou – os pobres permaneciam em filas quilométricas para adquirir um litro de leite.

No entanto, a versão do século XXI para o congelamento tem consequências muito mais devastadoras. Justamente no momento em que a Universidade Pública praticava a inclusão, o congelamento joga os pobres para fora. Eles saem para dar espaço ao mercado. Mercado que busca lucro imediato e que leva à ilusão de que pode financiar as pesquisas.

Pesquisas que agora devem desesperadamente buscar um interesse mercadológico. Uma luta incessante por patentes rentáveis, como se estas patentes conseguissem sustentar uma Universidade.

No entanto, esta lógica mercadológica tem furos. Para ter boas patentes (inovação e transferência de tecnologia) é necessário ter produção científica (pesquisa básica) o que requer boa estrutura e boa formação dos pesquisadores…. Para isso, são necessários bons professores, que são formados nos cursos de licenciatura…. Licenciatura que não gera patente e, portanto, não serviria para esta lógica mercadológica. E assim chegamos em uma encruzilhada…Se o mercado considera licenciatura um curso sem apelo tecnológico e portanto sem utilidade prática, passaremos a formar legiões de pesquisadores que não sabem nem de metodologia científica.

Minha análise é limitada porque foca nas licenciaturas, mas vale lembrar de todos os cursos das ciências humanas… Eles não geram patentes…. E por isso seriam desprezíveis ao mercado?

O conhecimento é muito mais universal que a métrica do lucro imediato. A patente é apenas a ponta do iceberg de um processo de formação de pessoas que buscam na educação uma ponta de esperança para uma vida de sofrimento. São o filho do seu José pedreiro que foi o primeiro doutor da família ou a dona Josefa que entrou na Universidade após os 60 anos. Este congelamento foi o primeiro passo de um futuro (transformado em verbo) em que as empresas entram na Universidade para explorá-la tal qual os europeus fizeram por estas bandas há mais de 500 anos. Lá atrás foram os índios os expulsos e escravizados. Hoje são os pobres.

E a Universidade aguarda o seu futuro em tons verbais assim, congelada, vendo seus laboratórios pifarem, suas máquinas quebrarem, seus sonhos ruírem.

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Leia o texto anterior: Robótica e o ensino da física

Helinando Oliveira é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) desde 2004 e coordenador do Laboratório de Espectroscopia de Impedância e Materiais Orgânicos (LEIMO).

Helinando Oliveira

Uma resposta para “Congelados”

  1. Regina Araújo de Lima disse:

    Boa ginástica argumentativa, mas isso não vai colar hoje em dia.

    É um equívoco afirmar que uma licenciatura é condição para obter pesquisa científica. Pesquisa é feita majoritariamente em cursos de pós-graduação e centros de tecnologia. Um licenciado no Brasil não sabe nem o que significa a base de dados Scopus, mas decora todas as leis e políticas de educação, sem falar nos infinitos textos de sociologia. Como o senhor tem pós-doutorado no MIT, poderia exemplificar como a licenciatura fez o MIT ser o que ele é hoje?

    Concordo que uma patente não é o resultado mais importante, mas ela representa uma ligação ao mercado. Se acha importante que as pessoas devem melhorar de vida, a criação de novos empregos é indispensável e a exploração de patentes tem grande potencial nesse sentido.

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