Confluência: um feitiço contra-colonial para o nosso tempo Diversidades

segunda-feira, 2 setembro 2024
Quilombo Lagoas, em São Raimundo Nonato (PI) (Foto: Bruna Marques)

Uma cosmopolítica quilombola do Sertão piauiense para enfrentar a catástrofe socioambiental da modernidade

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Na coluna Diversidades de hoje, Luan Santana narra uma experiência de reconexão ancestral no Quilombo Lagoas, maior território quilombola do Piauí. Durante a 2ª Semana Cultural, o autor encontrou Nego Bispo, mestre quilombola que introduziu o conceito de “confluência”, uma noção que desafia a ideia de coincidência, revelando a interdependência entre seres humanos e não humanos. O texto reflete sobre a ancestralidade, a história de figuras como Seu Zumba e Ganga Zumba, e a crítica à visão ocidental que separa a humanidade da natureza e da história. A “confluência” é apresentada como um feitiço contra o mundo moderno e colonial. Luan Santana é jornalista e educomunicador popular pela Plataforma Ocorre Diário. Mestre em Comunicação pela Universidade Federal do Piauí e doutorando em comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

No Quilombo Lagoas

Andarilhar pelas encruzilhadas da caatinga é uma experiência de reconexão ancestral. Era no fim da pandemia quando fui ao Quilombo Lagoas pela primeira vez. Esse é o maior território quilombola do Piauí e o quarto maior do país, com seus 62.365 hectares. Debaixo de uma tenda improvisada, sentados em roda, um grupo de cerca de 50 pessoas, entre quilombolas, gestores públicos, estudantes e professores universitários conversavam sobre questões inerentes ao quilombo, educação e território. Era a 2ª Semana Cultural do Quilombo Lagoas. Foi lá onde encontrei Nego Bispo (ou Antônio Bispo dos Santos). Não sabia eu que seria minha última conversa com o escritor, mestre quilombola, lavrador, formado por mestras e mestres de ofícios. Bispo ancestralizou dois anos depois desse encontro.

O local escolhido para o evento foi a Lagoa das Caraíbas, uma das mais de 100 espalhadas pelo território. O caminho até lá já é um aprendizado: o chão molhado denunciava a chuva que acabava de ir embora; as gotas que caíam das folhas do umbuzeiro pareciam lágrimas, mas não eram; as poças d’águas no meio caatinga pareciam lama, mas não eram. É que, como diz o mestre Nego Bispo, nem tudo que ajunta se mistura. Como a chuva na caatinga é anúncio de alegria e exuberância, comemoramos com ela a vida que se ergue, em resistência. E foi assim que o quilombo recebeu seus convidados naquele 11 de Dezembro. Das muitas histórias que vi e ouvi, uma me atravessou fortemente:

Faltava pouco para as 8 horas da manhã quando chegamos. Pouco depois, seu Francisco Oliveira entrou no terreiro da casa onde aconteceram as atividades da 2ª Semana Cultural do Quilombo Lagoas. Seu Francisco, ou melhor, seu Zumba como é conhecido no Quilombo, é um homem preto, de traços fortes, andar lento e sorriso farto. Um homem de poucas palavras, mas grande sabedoria. Com seus mais de 90 anos é um Griô que carrega na memória a história de um povo e no sangue, uma geração. “Daqui até lá em baixo é tudo cria minha”, disse ele com um sorriso largo e uma bengala na mão.

Confluência

Durante visita a Nego Bispo, no Quilombo Saco Curtume, no município de São João do Piauí (PI), em dezembro de 2021 (Foto: Raquel Paris)

Dividindo a mesa com os de casa e dos fora, seu Zumba escutava atentamente as conversas que sobrevoaram o terreiro, acompanhadas de muitos sorrisos. “Isso aqui é quilombo. Quilombo é alegria”, disse Bispo com o olho brilhando como o de um menino que brinca na chuva. “Vocês sabem porque o nome dele é Zumba? Vocês sabem o que significa Zumba?”, perguntou Nego Bispo durante uma fala em uma das rodas de conversas, enquanto dividia o olhar entre Seu Francisco e os demais participantes. A resposta foi o silêncio e meia dúzia de “Não”. Para Bispo, essa é a prova daquilo que ele chama de “confluência”. Algo que corre junto do vento e da chuva, que une o povo preto com sua terra mãe e que ensina que as coincidências não existem. “Ninguém sabe e talvez ninguém vai saber ao certo, mas a palavra Zumba vem de África. O que justifica esse nome, que não isso?”, disse.

Naquele momento, nem Bispo, nem Zumba, nem os quilombolas e nem os professores universitários ali presentes conseguiram formular uma resposta que justificasse o apelido recebido por Seu Francisco. “Desde que me entendo por gente, já me chamam assim”, disse ele. Dias depois, viajando um pouco do tempo, descobri que Zumba também nomeou o primeiro líder do Quilombo dos Palmares (entre 1670 e 1678). Ganga Zumba, ou Grande Senhor, foi o antecessor de seu sobrinho Zumbi. Ele foi um homem escravizado, que escapou do cativeiro nos canaviais e assumiu uma posição como herdeiro do reino de Palmares e o título de Ganga Zumba.

O que parece ser apenas uma coincidência, para Nego Bispo, na verdade, é uma confluência. Porque o nome que seu Francisco Oliveira carrega nunca esteve à deriva ou veio como milagre. Assim, o que Nego Bispo nos diz é que a memória de Seu Zumba do Quilombo Lagoas, embora não chegue a 1670, é confluenciada com a memória de Ganga, de Zumbi e de muitos outros ancestrais africanos. A materialidade não explica o que a ancestralidade organicamente ergue nos territórios contra-colonizadores do nosso tempo.

Entre o milagre e o feitiço

A história confluenciada de Zumba do Quilombo Lagoas e Zumba do Quilombo dos Palmares é apenas um exemplo dessa lei que rege a relação de convivência entre os elementos da natureza. Os ocidentais criaram uma narrativa fatídica acerca da história, onde a culpa quase sempre é abstrata. Assim, no século XX eles buscaram uma separação da humanidade com o restante da natureza; da mesma forma, no século XVIII, buscaram uma separação da história. Dessa forma, o que não é parte de mim não é digno de atenção e cuidado. Em um movimento contrário, a experiência dos povos quilombolas e indígenas nos mostra que somos – seres humanos e não humanos – interdependentes, ou seja, não estamos e nem somos separados da natureza e da história. Somos um só e, como corpo único, dependemos uns dos outros. 

“É essa relação mais ampla entre todas as vidas que eu chamo de confluência bio-interativa. Quer dizer: uma coisa são as águas se encontrarem, outra coisa é a confluência de todas as vidas que existem num bioma. O que é uma confluência bio interativa na caatinga? O marmeleiro tá oferecendo agora as flores. As abelhas vêm e levam a parte que interessa pra elas das flores e vão produzir o mel. O beija-flor vem e cata a parte que interessa pra eles das flores. E o marmeleiro não fica nem mais pobre, nem mais rico porque tá distribuindo o soro pra todo mundo. O que interessa pra ele é o fruto. Aí vem o fruto e vem um bicho que se alimenta daquele fruto. E o bicho que precisa daquele fruto vai e espalha a semente. Isso é o que chamo de confluência bio-interativa, ou seja, todas as vidas que dialogam com o marmeleiro ajudam a distribuir as sementes, para novos marmeleiros surgirem”, disse Bispo, durante uma longa conversa na porta de sua casa. 

A confluência desconstrói o discurso da coincidência, na medida em que sugere que “tudo o que acontece tem um motivo, tem uma origem, não é por acaso, a coincidência é”, explica Bispo. Ou seja, enquanto a coincidência deposita na abstração aquilo que acontece entre os seres, a confluência sugere movimentações orgânicas dos corpos articulados à ancestralidade dos povos. E Bispo complementa: “eu escrevi isso pra dizer: vocês são o povo da coincidência, o povo do milagre, o povo sem rumo. Mas nós não, nós somos povos das encruzilhadas, a gente sabe pra onde estamos indo e pra onde queremos ir. Somos confluência”. 

Luan Matheus Santana

Assim, diferente do milagre (intervenção divina), a confluência é como um feitiço, onde a movimentação dos seres é que conduz os encontros, sejam eles humanos (como Zumba do Lagoas e Zumba de Palmares) ou não-humanos (como o marmeleiro e as abelhas). Um feitiço lançado contra o mundo moderno e colonial, que desmonta seus paradigmas e restabelece a relação entre os seres, humanos e não-humanos. Um feitiço que se posiciona como alternativa ao modo individualista e neoliberal de ver e ser no mundo. Um feitiço que atravessou o tempo, atravessou os corpos e segue necessário para o momento atual.

Leia o texto anterior: O retorno da Coluna Diversidades

A coluna Diversidades tem a curadoria do grupo de pesquisa DESCOM – Insurgências Decoloniais, Comunicação, Artes e Humanidades, do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Luan Matheus Santana

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