Pesquisadora reflete sobre a comunicação popular e insurgente como um processo de empoderamento popular no registro das histórias e memórias dos oprimidos
Por Sarah Fontenelle Santos* (Instagram: @sarahfontenelle.santos).
A nossa experiência no mundo não pode ser silenciada. Nos fazemos humanos desde a palavra que gera interação e por sua vez é ação. Assim como dizer palavra é ação, a memória delineia nosso caminhar. O povo no sul do mundo teve sua palavra negada e suas memórias atrofiadas pelo saber/poder colonizador. Se faz, portanto, cada vez mais necessário, construirmos comunicação-emancipação para garantir a palavra dos setores subalternizados e assim honrar a memória, caminhos de ReExistência.
Buscarei refletir neste espaço sobre a importância da comunicação popular, insurgente, comunitária, alternativa, transgressora e independente como um processo de empoderamento popular no registro de nossas histórias e memórias. Buscamos, deste lado, garantir, não a neutralidade, mas a possibilidade de poder sempre contar mais uma história de vidas pluriversais. Ser palavrAção, é que aprendemos com Freire e seus passos latinos.
“A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo” (FREIRE, 1987, p. 44).
Contar, reportar, agir e interagir é o que põe em ação as várias iniciativas que buscam romper o bloqueio dos latifúndios midiáticos que apagam nossos saberes, nosso dizer e nossas cosmologias em ação homogeneizante. O diferente, o outro, se torna algo a ser combatido, a menos que possam lucrar com as nossas subjetividades.
É no horizonte histórico de longa duração onde se encontram nossas possibilidades de construção de caminhos, pois lembramos do passado como uma pilar que sustenta nosso caminhar. De outro lado, a comunicação-propaganda, a midiatização do processo capitalista sempre nos rouba nosso passado com vistas a nos lançar ao futuro, sem raízes, sem território, sem canções, sem marcas, sem bailado de passo no chão, sem memória. É preciso sim, recuperar a nossa história e as memórias populares se queremos traçar um horizonte de longa duração para os setores que insurgem contra as estruturas sociais segregadoras. E nós fazemos isso comunicando com nossos jeitos, nossos corpas e corpas, nossas estéticas, nossas possibilidades.
A comunicação do povo, de outro lado, busca historicizar, ir além da ditadura da presentificação, do instântaneo e simultâneo, do furo que às 5 da tarde já está velho. Os meios de comunicação da ordem hegemônica e capitalista buscam trazer tudo para o âmbito do “eu”, personalinalismos, em vez de pluralismo. No contar do povo, a coletividade é leme. Não porque não possamos ter direito à subjetividade e individualidade, mas porque sabemos que o individualismo desgarra o indíviduo de sua vocação de Ser Mais (para lembrar uma categoria freireana, Ser Mais, como vocação que alça o indivíduo a humanidade solidária). Nas nossas narrativas sabemos que o particular tem relação com a totalidade, não fragmentamos as experiências, pois sabemos a quem a fragmentação serve. Serve ao capitalismo, que busca nos confundir e segregar, trocando a parte pelo todo.
Podemos sim ter nossas lembranças individuais, mas elas se tornam memória desde a interação com o outro, assim ganhando potência coletiva.
“Nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos outros, mesmo que se trate de acontecimentos pelos quais só nós estivemos envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma quantidade de pessoas que não se confundem” (HALBWACHS, 1990, p. 26).
É que o indivíduo não faz sentido, se não tiver raízes profundas que dê alimento à sua experiência, ao seu imaginário e ao fazer diário.
Quem registra a nossa memória, senão nós? Quem narrará a nossa história, senão o povo?
Se você fosse perguntado hoje sobre quem conta a história dos invisibilizados, o que você diria? Onde estão as memórias das comunidades tradicionais, originárias, ribeirinhas, periféricas, dos quilombos urbanos, dos setores oprimidos, senão em plataformas criadas por estes próprios setores?
Este é também um chamado para lembrar que nesta conjuntura, onde é tão fácil se perder, as mídias populares estão narrando e registrando, as histórias e as memórias do povo, para que não nos percamos de vista. Nossas memórias tecem reExistências e é por isso que não podemos e nem iremos deixar de registrá-las. Nos querem sem história para que nos contem a história única e esta já não faz mais os debaixo dormirem. Atentos e atentas estamos, para que não confundamos o nosso lado.
Diante dos esfacelamentos das relações nos propomos, a contar histórias num fazer artesanal, que busca costurar as narrativas do povo, abrindo caminho para o direito à palavra, tantas vezes silenciada, que por sua vez enlaça o Eu-tu numa experiência que não poderia ser outra, senão a dialogicidade.
Buscamos tecnologias sociais para garantir vida longa a nossa memória e a recuperação da história popular latino-americana, comunicando nossa voz e ocupando mentes e corações. A comunicação, deve servir a sua vocação, de Comum, a partilha que faz sentido na interação e cooperação das consciências.
Contar, reportar e registrar a história do povo é também compromisso com a transformação social. Romper o silenciamento é um jeito também de ser comunicação que insurge em defesa do que somos. E o que somos senão, nossas memórias? Democratizar a comunicação é também democratizar a história e escrevê-la junto a seus protagonista e suas experiências. Assim estaremos garantindo passagem às nossas memórias, para que cumpram sua tarefa de solidificar a nossa experiência no presente, enraízados na terra que nos nutre, honrando as experiências passadas para lutarmos por um presente de bem viver.
Referências:
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987.
*Sarah Fontenelle Santos é jornalista e doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. É co-idealizadora da Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa Ocorre Diário. É yoguini (praticante e estudiosa de yoga) e acredita na força restauradora da ancestralidade.
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Leia a coluna anterior: Ressignificando territórios através da fotografia documental
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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