É necessário e possível pensar e construir uma comunicação que mobilize um imaginário já presente nas culturas dos povos originários de Abya Yala, o Bem Viver
Arte de Lud Nascy intitulada “caminhando na escuridão”. Que na caminhada da noite ou do noite a comunicação seja encontro e partilha
Por Sarah F. Santos* (Instagram: @sarahfontenelle.santos) .
A comunicação tem sido instrumento garantidor de um sistema-mundo que exterioriza e exclui as epistemologias avessas ao eurocentrismo, que com suas caravelas colonizou e continua colonizando o mundo com seu mais cruel modelo de sociedade: o sistema capitalista. Brecht nos convidava em seus poemas a desconfiar do mais trivial, dizia ele que nada é natural e nada deve parecer impossível de mudar. O capitalismo de fato não é natural. Foi uma construção imposta às nossas existências sob pena do racismo e do machismo como estruturas fundantes. Pois bem, se foi construído pode ser também desfeito. E sim, tudo pode vir a ser fumaça no ar.
O objetivo aqui é apontar a comunicação como mobilizadora de um imaginário que já é presente e vivenciado na cultura dos povos indígenas em Abya Yala (América Latina), o Bem Viver. Esta filosofia também é vivenciada nas rodas e espaços onde se entende a biointeração com a natureza e a partilha como princípios suleadores.
Mas antes de mais nada, cabe lembrarmos como chegamos até aqui no fundo de um poço que naturaliza o povo na fila do osso (para comprar), naturaliza mortes em uma pandemia que tem vacina (por irresponsabilidade governamental e desigualdade mundial), naturaliza morte de centenas de indígenas e povos tradicionais pelo garimpo ou por megaempreedimentos do agronegócio ou mineração e a lista vai grande e incontável de naturalizações.
Segundo Villanueva (2017) os autores Quijano, Mignolo, Nelson Maldonado-Torres, em suas elaborações para entender a colonilidade do poder/saber apontam a quádruple colonialidade: 1) A Colonialidade da Cultura, que versa sobre a subjugação dos imaginários sociais avessos ao espelho eurocêntrico; 2) Colonialidade do Ser, que é a superioridade de uns sobre outros, sendo expresso pela racialização e as assimetrias de gênero; 3) Colonialidade do Saber, que causou e causa os epistemicídios dos diversos saberes e conhecimentos ao redor do mundo que não emanam do universalismo científico europeu, quer dizer, exclui os conhecimentos que não se ajustam à racionalidade moderna; 4) Colonialidade do Fazer, resposta das últimas três ao nosso fazer diário.
Foquemos no ponto 1 apresentado. A colonialidade da cultura com a sujugação do imaginário social dos diferentes povos ao redor do mundo fez com que se invisibilizasse as cosmovisões diversas capazes de serem soluções para outros mundos possíveis. Mundos estes, que são experimentados diariamente na vivência dos diversos povos. Tomamemos aqui o Bem Viver como uma destas filosofias do possível. Esta não é uma filosofia para o amanhã, mas uma realidade que deve ser experimentada hoje.
A comunicação como instrumento a serviço do capitalismo cololizador tem garantido este sentido de naturalização deste sistema como se fosse o único possível, apresentando-se, portanto, como UNIversal. Para Contreras (2017) “o processo neocolonizador troca a cruz e a espada pela linguagem persuasiva do progresso através dos meios de comunicação”.
O sistema-mundo e suas estratégias buscam diariamente impor um único modo de vida, onde só cabem a super exploração da natureza e da mão de obra humana. Concordamos com Dussel (2008) quando ele afirma que é necessário transcender o projeto global imposto pela Europa e América do Norte. Mas para isso é preciso fazer a crítica completa à modernidade e suas lástimas perpetradas ao Sul Global.
O ponto de partida desta empreitada para ir além da modernidade é criar diálogos desde diversos conhecimentos e filosofias para produzirmos sentidos plurais em universos plurais, os pluriversos possíveis. As soluções para superar o atual estágio da crise civilizatória na qual nos encontramos devem partir daqueles setores que foram historicamente silenciados, explorados, usurpados, estuprados, assassinados e excluídos em nome do lucro de uns poucos. Estes conhecimentos filosóficos não devem ser encarados como mera perfumaria acadêmica, mas devem ser vivênciadas no chão da vida.
Comunicação: mobilizando outros anúncios
Mobilização social são diferentes formas desde saberes populares e táticas dos debaixo para construir outro projeto de mundo ético e justo e faz isso de forma coletiva e pondo em diálogo as diferentes consciências para a construção do comum. A mobilização, portanto é um ato de liberdade, pois emana das vontades para participar. Segundo Toro e Wernek (1996) “Mobilizar é convocar vontades para atuar na busca de um propósito comum, sob uma interpretação e um sentido também compartilhados” (TORO; WERNEK, 1996, p. 5). Para os autores, a mobilização social também é ato de comunicação, pois existe um processo compartilhado de discursos, visões de mundo e informações.
A comunicação como mobilizadora das vontades é importante na coletivização das ações, dos afetos e mais do que isso, na coletivização de um horizonte comum, um imaginário partilhado. Não falo aqui dos informes, comunicados ou slogans propagandistas, falo da comunicação como processo de COMpartilhar e produzir o comum.
A comunicação como mobilizadora amplia horizontes, expande as percepções e anuncia no tempo e espaço os encontros possíveis. Anunciar é coletivizar o sentimento de poder e autonomia do povo, fazendo com que eu me veja no outro. Deste modo, a ponte Eu-Tu, transborda de sentidos e convida para uma elaboração coletiva. Anunciar os fazeres e práticas do povo desde suas epistemes e imaginários é coletivizar sentidos, dando segurança para continuar a caminhada pois sabemos que não estamos sozinhos na empreitada de atravessar a racionalidade moderna e suas desumanizações.
Saberes ancestrais para comunicar uma vida boa: Pondo o mundo às avessas
Quando comunicamos para o Bem Viver anunciamos a ideia de uma vida boa no respeito, complemetariedade e compartilhamento comunitário. É introduzir elementos reais que perfazem as epistemes e as práticas de diferentes experiências no mundo, se contrapondo ao discurso UNIversal eurocêntrico, portanto, se contrapõe a noção de lucro acima da vida creditada massivamente na sociedade como única via possível.
Arte do JornArtista Jader Damasceno inspirada no poema de Eduardo Galeano para Encontro de Estudantes de Comunicação da Enecos em 2011. No mundo em que impunidade, racismo e indiferença são naturalizados, que possamos mudá-lo do avesso e façamos nossa contra-escola.
Para Contreras o Bem Viver está baseado em duas dimensões das quais a comunicação não pode abrir mão e terá que dar conta: 1) o campo dos valores e princípios éticos e políticos que tendem a transformar o individualismo, utilitarismo e sensacionalismo próprios da comunicação sequestrada pelas empresas; 2) O campo das experiências e sentidos que são legitimadas nas práticas comunitárias.
Assim a comunicação comprometida no fortalecimento dos imaginários que nascem das epistemes plurais que reExistem no Sul Global e aqui trazemos o Bem Viver, consiste em construir processos sociais, culturais e políticos que tenha em seu centro a harmonia e complementariedade das diferentes vidas.
Para o filósofo indígena David Choquehuanca apud Contreras 2014, os 4 princípios do Bem Viver são: 1) Saber Escutar; 2) Saber Compartilhar; 3) Saber viver em harmonia e complementariedade; 4) Saber sonhar.
O desafio de senti-pensar uma comunicação comprometida com o povo e a transformação social é sobretudo, elaborar junto com os diversos saberes. Arrisco dizer que a vocação da comunicação é saber escutar e compartilhar, mas estes princípios foram sequestrados pela comunicação/propaganda dos conglomerados de comunicação e sua economia política. Não existe comunicação sem escuta e sem partilha. Escutar aqui traz também o sentido de reparação histórica às vozes que foram silenciadas.
Anunciar as noções de compartilhamento e complementariedade entre as diferentes vidas sobre a terra é uma das tarefas que a comunicação como mobilizadora e colevizadora não pode abrir mão. É dizer, a vida se faz na complementariedade entre vidas humanas e não-humanas e sem a biointeração com a natureza estamos fadados/as à auto-destruição.
E saber sonhar é a missão inadiável para elaboração de ações do presente um outro mundo possível. Somos sujeites/as/os históricos e é missão da comunicação contribuir para que os sujeites oprimides e subalternizades descubram-se como sujeites de sua própria destinação histórica e ser palco para que possamos contar a nossa própria história. A comunicação não pode se negar a ter o sonho como uma epistemologia mobilizadora e como prática, pois é do saber sonhar onde elaboramos a vida justa e boa e reafirmamos nossas compromissos com o (s) povo (s).
Somente a mera difusão não vai trazer a concretização da comunicação para o Bem Viver. É preciso fazer com que o povo se aproprie das narrativas e das produções midiáticas realizadas pelo por eles mesmos. É preciso que suas narrativas e discursos estejam em circularidade, compartilhados, socializadas e apreendidas de modo que possamos garantir uma nova síntese intercultural para novas convivências e alianças entre os diferentes povos, assim legitimando o bem viver como forma de vida, dentre tantas outras epistemologias plurais que podem ser base para outros conviveres.
*Sarah F. Santos é jornalista e relações públicas por formação, comunicadora popular por questão de classe, co-idealizadora da Plataforma de Comunicação Popular e Colaborativa OcorreDiário e praticante de outros mundos possíveis.
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Leia a coluna anterior: Diálogos sobre (re)existências e (bio)diversidades
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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