Ciência e religião: um casal estranho Coluna do Jucá

quinta-feira, 15 novembro 2018

O número de pessoas que se consideram religiosas vem caindo no mundo nos últimos anos

Yuval Noah Harari, autor de Sapiens, combina história, filosofia e ciência em “Homo Deus: Uma breve história do amanhã”, seu outro grande sucesso literário. Uma das questões abordadas neste livro diz respeito à relação entre ciência e religião, a qual o autor refere-se como “O casal estranho”, expressão adotada no capítulo que trata especificamente desse tema. Nele, Yuval exemplifica o porquê dessa denominação: “(…) A ciência sempre precisou da ajuda da religião para criar instituições humanas viáveis. Os cientistas estudam como o mundo funciona, mas não há um método científico para determinar como os humanos devem se comportar. A ciência nos diz que os humanos não podem sobreviver sem oxigênio. No entanto, será aceitável executar criminosos por asfixia? A ciência não sabe como responder a essa pergunta. Somente as religiões nos fornecem a orientação necessária”.

Yuval Noah Harari, professor israelense de História, autor de Sapiens e de Homo Deus, dois grandes sucessos literários. Fonte: Google.

O autor lembra que essa relação fica ainda mais estranha quando se entra no campo da ética, uma vez que “a religião provê a justificativa ética para a pesquisa científica e em troca influencia a agenda científica e o uso das descobertas científicas”. Porém, mesmo com a dissonância que há entre ciência e religião, em especial com o advento da era moderna, é difícil não tratá-las como um casal estranho, já que: “A ciência não tem autoridade nem capacidade para refutar ou corroborar os conceitos éticos elaborados pelas religiões. Entretanto, os cientistas têm muito a dizer sobre declarações factuais religiosas. Por exemplo, os biólogos são mais qualificados que os sacerdotes para responder a questões factuais do tipo “os fetos humanos têm sistema nervoso uma semana após a concepção? Eles podem sentir dor?”.

Ao se analisar dados de uma pesquisa conduzida pelo Worldwide Independent Network/Gallup International Association (WIN/GIA) em 2017, apresentados no Fórum Econômico Mundial, é difícil prever o futuro desse casal estranho. Isso porque, entre os 68 países pesquisados, o percentual de pessoas que se consideravam religiosas, caiu de 77% para 62% entre os anos de 2005 e 2017. A China, por exemplo, é o país com o maior percentual de pessoas que se declaram ateus (67%), ao passo que os que se declaram sem religião é de 23%. Um fato curioso é que a China caminha para se tornar num futuro próximo, a maior potência econômica do planeta – mesmo com “guerra comercial” iniciada por Trump. No campo científico, os chineses também avançam a passos largos, embora ainda não haja tantas certezas quanto a uma possível posição de liderança nesse campo.

Membros da igreja pentecostal de Nova York (Robert Nickelsberg/Getty Images) Fonte: Pew Research Center.

Por outro lado, os americanos continuam sendo um país fortemente religioso e o mais devoto entre todas as democracias ocidentais ricas. Segundo o centro de informações Pew Research Center (PRC), os americanos rezam com mais frequência, são mais propensos a frequentar serviços religiosos semanais e atribuem maior importância à fé em suas vidas do que adultos em outras democracias ocidentais, como Canadá, Austrália e a maioria dos países europeus. No futuro, parece que a disputa entre americanos e chineses promete enveredar por outros campos, além do econômico, comercial, científico, cultural e político.

Um homem segura um rosário durante ato religioso em uma igreja improvisada na vila de Youtong, província de Hebei, China. (Image: REUTERS/Thomas Pete) Fonte: Worldwide Independent Network/Gallup International Association (WIN/GIA)

Mas e o Brasil? Segundo os dados do IBGE, o número de pessoas que se declaravam sem religião passou de quase 7 milhões em 1991 para pouco mais de 12 milhões no ano de 2000, e atingiu o patamar de mais de 14,5 milhões de pessoas em 2010. Ao que tudo indica, no censo de 2020 esses números devem aumentar.

Ainda é cedo para prever se na história do amanhã, a fé religiosa está, de fato, com os pés nos freios e os sem religião e/ou ateus estão em marcha. Difícil também prever as implicações do ponto de vista filosófico, ético e científico de uma mudança de protagonismo sobre esse casal estranho. E até mesmo se um dia, ambos, definitivamente, deixarão de sê-lo. Quanto ao Brasil? Primeiro, a gente, ao menos, recupera a verba da ciência que foi cortada nos últimos anos. Logo após, será necessário aguardar para ver como ficará a relação do casal estranho pelos próximos anos. Depois disso, a gente conversa.

Referências

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Leia o texto anterior: Direito à Ciência

Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.

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