A bióloga Cecília Luna fala de seu trabalho como coordenadora de educação ambiental e dos desafios na conservação do meio ambiente
A entrevista dessa semana foi realizada com Cecilia Licarião Barreto Luna, Coordenadora de Educação Ambiental do Parque Estadual do Cocó, em Fortaleza, e dos projetos de conservação Aves de Noronha e Aves Endêmicas de Noronha. Cecília é bióloga e Mestre em Ecologia e Recursos Naturais, ambos pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Durante sua graduação, participou do programa Ciências Sem Fronteiras, na Universidade do Porto, em Portugal, onde permaneceu durante 12 meses cursando Mestrado Integrado em Ciências do Mar – Recursos Marinhos. Coordena ainda o projeto Aves Endêmicas de Fernando de Noronha e Aves de Fernando de Noronha, este último com financiamento da SOS Mata Atlântica.
Coluna do Jucá: Você poderia falar um pouco a respeito do Parque Estadual do Cocó, bem como da sua atuação enquanto Coordenadora de Educação Ambiental?
Cecília Luna: O Parque Estadual do Cocó é o maior parque natural urbano do Norte Nordeste, com 1.571 ha de extensão, um oásis verde no meio da selva de pedras. Esse parque tem uma enorme importância para a fauna da nossa cidade, abrigando uma enorme riqueza de espécies. São mais de 130 espécies de aves, 15 mamíferos e 31 répteis, sem falar nos peixes e invertebrados. São bandos de pica-paus, matilhas de raposas, inúmeras cobras e até cavalos marinhos. Toda essa diversidade dependente da área do parque para sobreviver. Diante disso, o meu papel como coordenadora de Educação Ambiental é aproximar os visitantes e usuários do parque dessa realidade. Muitas pessoas frequentam o parque há anos e não têm ideia do que essa mata abriga. É triste que um frequentador assíduo do parque me diga que nunca viu um pica-pau, uma vez que existem cinco espécies dessa ave, é muito fácil ver um. Assim, nosso papel é despertar a curiosidade das pessoas. Queremos aflorar a sensação de pertencimento a esse ambiente, só assim acreditamos que a conservação poderá de fato ser feita. É preciso conhecer para preservar. Essa frase pode parecer clichê, mas é a mais pura verdade. É mais fácil lutar pela preservação do parque se eu entender que aquela área é a casa de raposas, cágados, cavalos marinhos, jiboias e aves…Concorda comigo? Então essa é a nossa missão, fazer com que as pessoas conheçam e se apaixonem pela nossa fauna silvestre do Parque Estadual do Cocó.
Coluna do Jucá: Os grandes centros urbanos, como a cidade de Fortaleza, abrigam uma população crescente de animais domésticos (cães e gatos) nas ruas. A população, inclusive, utiliza os parques urbanos, como o do Cocó, como depósitos para esses animais. Por outro lado, há inúmeros problemas de saúde pública associado com a presença desses animais. É possível conter a expansão desses animais nas cidades de maneira a compatibilizar a sua presença com a de outras espécies, mantendo, assim, um ambiente ecologicamente mais equilibrado?
CL: Infelizmente o que observamos na cidade de Fortaleza é um crescimento desenfreado das populações de animais domésticos em ambientes públicos. Isso se torna mais preocupante quando esses abandonos ocorrem em Unidades de Conservação, como é o caso do Parque Estadual do Cocó, uma área de proteção integral. Além das questões sanitárias, que são muitas, os animais abandonados, são os principais predadores da fauna silvestre, matando milhares de aves, répteis e pequenos mamíferos por ano. Medidas como castração e feiras de adoção são realizadas em algumas áreas da cidade, mas o índice de abandono e taxas reprodutivas é maior do que as medidas paliativas, dessa forma não é possível que se chegue a um equilíbrio. O lugar de animais domésticos é nos domicílios e não nas ruas. A nossa fauna silvestre já é muito impactada pela perda de hábitat, tendo que sobreviver em áreas cada vez menores com recursos cada vez mais escassos. A presença de animais domésticos nas áreas públicas só faz com que seja cada vez mais difícil se manter a nossa fauna silvestre a salvo. Um ambiente ecologicamente equilibrado terá mais chances de ser alcançado sem a presença de animais domésticos nas áreas urbanas. É preciso que se faça algo antes que seja tarde demais. Antes que a nossa fauna silvestre seja extinta! É claro que os animais domésticos não têm culpa de serem abandonados, mas é preciso que se pese o papel ecológico das espécies.
Coluna do Jucá: Alfred Crosby descreve em seu livro “Imperialismo Ecológico”, a expansão biológica que ocorrera nas Neoeuropas, proporcionada pelos europeus, no período de 900-1900. A disseminação de animais, em especial aqueles de criação, e sua respectiva proliferação como pragas foi ainda mais devastadora em ambientes insulares como a Nova Zelândia, Havaí e Madagascar, por exemplo. Pode-se afirmar que a atual disseminação de animais domésticos, como os gatos no Arquipélago de Fernando de Noronha, representa risco semelhante ao visto no passado com outros animais?
CL: Os ambientes insulares estão isolados, desligados do continente. Nessas áreas as condições são mais remotas e qualquer alteração no meio pode ser fatal para a fauna e flora nativa. Os animais que vivem em ilhas muitas vezes não desenvolveram nenhum tipo de defesa contra predadores, uma vez que evoluíram nesses ambientes sem nenhum tipo de ameaça. A presença de animais de criação ou domésticos como cães e gatos nesses ambientes é muito mais preocupante do que no continente. Em Fernando de Noronha, por exemplo, os gatos são os maiores responsáveis pelo declínio das populações de aves. As aves marinhas, como os atobás-mascarados (Sula dactylatra), reproduzem no chão, por isso tem seus ovos e filhotes facilmente predados. As aves terrestres como o sebito (Vireo gracilirostris) e a cocoruta (Elaenia ridleyana), diariamente são predadas pelos gatos. No caso das aves terrestres a problemática é ainda maior, uma vez que essas aves são endêmicas de Fernando de Noronha, ou seja, elas não ocorrem em nenhum outro lugar do planeta, só nessa ilha. Vale ressaltar que em outras ilhas insulares, os gatos já extinguiram 33 espécies de aves, essa ameaça não é mais novidade para ninguém. O que eu me pergunto é por que razão nós ficamos de braços cruzados assistindo nossas espécies raras serem extintas e não fazemos nada? É preciso ter bom senso. Será que precisamos ver mais duas espécies de aves serem extintas para entender que o lugar de gatos e cachorros não é dentro de unidades de conservação? Não é uma conta difícil de fazer. As pessoas precisam entender isso!
Para tentar contornar esse cenário de pouca importância e descaso, nós criamos o Projeto Aves de Noronha, que tem como objetivo redirecionar o olhar das pessoas para as aves, fazendo-as entender o papel desses animais no ambiente e quais são as suas maiores ameaças. Ao longo desse projeto ministramos palestras, cursos e atividades de observação, todas essas ações com o intuito de fazer as pessoas se apaixonarem pela biodiversidade local.
Coluna do Jucá: Cada espécie biológica é única e que carrega consigo um valor inestimável para biodiversidade do planeta. Isso por si só, já é uma condição irrefutável para preservá-las. A extinção, por sua vez, é uma condição irreversível. Diante dela, sentimo-nos consternados. A partir desse sentimento, decorre-nos então uma incumbência, a da preservação, seja qual for a espécie. Nesse contexto surgem movimentos de preservação, como do animalzinho, agora ilustre, do bioma Caatinga, o tatu-bola. Você acha que é possível despertar esse sentimento de consternação na sociedade antes desse assunto virar manchete de jornal, ou seja, com a extinção de uma espécie, ou é algo utópico que se limita ao campo da retórica?
CL: A extinção de espécies sempre foi algo visto como distante e pouco real. Quando pensamos em extinção, logo nos vem em mente os dinossauros que não habitam mais esse planeta há milhões de anos. No entanto, a extinção não é algo tão distante assim. Nos últimos 500 anos, 190 espécies de aves foram extintas no mundo, o que representa 1,8% das espécies de aves que conhecemos hoje. É assustador. A extinção de espécies é algo normal, sempre existiu, mas a velocidade com que ocorre hoje pode ser comparada a grandes eventos de extinção como o que extinguiu os dinossauros. Estamos vivendo na era do antropoceno, também conhecida como a sexta extinção.
Na tentativa de reverter esse quadro, muitos conservacionistas utilizam espécie bandeira como o tatu-bola, como estratégia de conservação. As espécies bandeiras são animais carismáticos, que despertam a empatia das pessoas. Não tem como olhar para um tatu-bola todo enroladinho e não achar incrível essa cena, o que não podemos falar para caranguejos, cobras, sapos e lagartas. No entanto, quando conservamos o tatu-bola, conservamos as áreas em que eles ocorrem e com isso várias outras espécies. Essa estratégia é excelente.
Por outro lado, existem outras estratégias de conservação que levam em consideração discursos menos trágicos. É preciso sensibilizar as pessoas fazendo com que elas sintam na pele como é incrível estar em contato com a natureza. Uma vez que o seu hobbie é estar em campo observando a natureza, fazendo trilhas ou qualquer atividade que seja necessária uma floresta em pé, será muito mais fácil de convencer essas pessoas de que é preciso conservar aquela área. Não há o que se contemplar se não houver uma área minimamente conservada. É preciso contagiar as pessoas com um discurso positivo. A partir do momento que se entender que uma floresta em pé vale muito mais do que no chão, não vai importar qual espécie estamos falando para preservar, seja o periquito-cara-suja ou o tatu-bola, todos entenderão a importância disso. Muitas pessoas não entendem o quão dramático é a extinção de uma espécie, afinal o que vai mudar na minha vida se o tatu-bola for extinto? Esse é o pensamento de muita gente. O que está faltando é conexão das pessoas com o natural, e essa reconexão é cada vez mais vital e urgente para o planeta.
Coluna do Jucá: Muitas bandeiras justas e oportunas são levantadas em favor da questão ambiental. Porém, a despeito dessas bandeiras, pouco se fala de uma questão primordial: que a comodidade, a praticidade e o conforto dos dias atuais custam muito caro, os quais, inclusive, refletem-se em uma demanda insaciável por recursos naturais. Diante desse contexto, e considerando-se ainda a distância que há, muitas vezes, entre o discurso e a prática em defesa do meio ambiente, as questões pertinentes à justiça social e aos padrões de consumo não deveriam preceder esses discursos?
CL: O problema é muito mais complexo do que se imagina. Não é o simples fato de parar de usar um canudo que vai mudar o mundo, de fato não é. Mas, é preciso que se dê o primeiro passo. O fato de você estar começando a mudar algum hábito, quer dizer que você está começando a pensar no tamanho do impacto que você gera no mundo. A gente começa recusando um canudinho, depois as luvas de plástico para comer pizza, as sacolas do supermercado, quando você percebe estar desistindo de beber água na academia porque não quer usar o copo descartável. É um caminho sem volta. Obviamente que é preciso muito mais. Nosso comodismo é algo cultural. Muitas vezes nem passa pela nossa cabeça mudar determinados hábitos, e isso vem se tornando fatal. É preciso política pública intensa. Interesse dos órgãos em geral. Lembra décadas atrás que ninguém usava cinto de segurança e achou o maior absurdo quando isso foi obrigatório? Foram muitas propagandas e multas. Foi difícil mudar de hábito, mas hoje é automático colocar o cinto. Tem que ser feito algo dessa grandeza. No entanto, essas ações não dependem só da gente, podemos fazer pressão. Mas enquanto isso não ocorre, podemos parar de apontar o dedo para os outros e começar a mudar os nossos hábitos. O exemplo ensina mais do que qualquer coisa que a gente venha a falar ou postar nas mídias sociais.
A Coluna do Jucá é atualizada às quintas-feiras. Leia, opine, compartilhe, curta. Use a hashtag #ColunadoJuca. Estamos no Facebook (nossaciencia), no Instagram (nossaciencia), no Twitter (nossaciencia).
Leia o texto anterior: Com foco na educação
Thiago Jucá é biólogo, doutor em Bioquímica de Plantas e empregado da Petrobrás.
Thiago Jucá