Considerado o pai da ficção científica, o escritor Júlio Verne foi um visionário quanto aos grandes avanços científicos e tecnológicos da humanidade
Fortaleza, 12 de abril de 2018.
Querido Júlio Verne,
Recordo-me que na adolescência, um amigo me contou uma história inusitada. Ele disse que estava no pátio do Colégio onde estudávamos, folheando o livro A volta ao Mundo em Oitenta Dias, quando uma funcionária da escola aproximou-se e perguntou o que ele estava lendo. Ele respondeu à pergunta, dizendo que se tratava de uma obra sua, Júlio Verne. Ela então o indagou se aquilo não seria uma perda de tempo, o que o deixou confuso, procurando justificativas para o comentário. Anos depois, tive a certeza de que a pessoa que havia interpelado aquele adolescente outrora tinha suas razões. Ao que me consta, você teve uma das obras mais traduzidas em toda a história, totalizando traduções em mais de 148 línguas.
Antes de ir adiante com as minhas percepções, teço uma breve consideração a seu respeito. Você, um autor francês (1828-1905), escreveu inúmeros livros, quase uma centena, narrando histórias verossímeis que antecipariam grandes feitos da humanidade como no livro Da Terra à Lua (1865). Algumas das suas obras foram parar nas telas dos cinemas como: 1) Viagem ao centro da Terra (1864); 2) Cinco semanas a bordo de um balão (1863) e 3) A volta ao mundo em oitenta dias (1872). Como geralmente ocorre, o cinema tentou aproximar a ficção científica da realidade. Como também de costume, a história contada nas telas, geralmente um recorte, ficou distante da viagem fantástica proporcionada pela imaginação daqueles que leem o livro. Mas isso são detalhes.
Júlio, para aqueles que simplesmente ignoram o progresso, os avanços e as descobertas científicas de uma época, bem como a maneira pela qual essa construção histórica ocorreu, seus escritos realmente devem estar associados à perda de tempo. Principalmente, devem pensar que, por termos entrado no século XXI, não há nada de interessante a apreciar acerca dos séculos passados. Para esses, Júlio, talvez você represente apenas uma literatura morta. Não se trata de nostalgia, como alguns podem pensar, pois a seu favor revelam-se nomes como o do astrônomo Carl Sagan, o qual encarou a sua obra como o fruto de um momento interessante do final do século XIX, quando surgiram diversos campos de estudo do conhecimento humano. Para mim, a publicação da obra de Darwin sobre a modificação das espécies (1859) é bem emblemática dessa época.
Júlio, ao que me parece a sua imaginação não era penas fértil, era também visionária. O que dizer, por exemplo, dessas duas frases atribuídas a você: “Tudo que o homem pode imaginar, outros homens poderão fazer” e “Um dia iremos visitar a Lua e planetas com a mesma facilidade com que nos dias de hoje se vai de Liverpool a Nova York”. Dado o conhecimento científico atual, essas possibilidades parecem bem plausíveis, mas pensar nisso há quase um século e meio é, no mínimo, bem curioso. Parece até que os grandes avanços científicos da sua época trouxeram à tona um estado de espírito de tanta confiança e otimismo que não se separava o progresso técnico do humano e que, infelizmente logo foi interrompido pela Primeira Grande Guerra. Mas aí é outra história. Por tudo isso, vale o título atribuído a você de o “Pai da Ficção Científica”. Realmente você foi um visionário, um homem a frente do seu tempo.
Depois que você partiu muita coisa aconteceu na ciência, revoluções em várias áreas, algumas delas inimagináveis ou futuristas até para quem contribuiu para tal. Vou me atrever a citar apenas algumas delas: a física viu nascer e florescer, por exemplo, a relatividade, a teoria quântica, a matéria escura, o mundo subatômico, a teoria das cordas, a convergência cósmica. A biologia, por sua vez, viu a genética, a biologia molecular e a bioquímica ditarem as rédeas de grandes descobertas. Aí, a ecologia, a microbiologia, a imunologia, as “ômicas”, a bioinformática e a neurociência mostraram que a Revolução Científica dos novos tempos era, na verdade, uma revolução dos ignorantes que muito pouco sabiam, e, assim, ainda permanecem. A química revolucionou por meio da síntese de novas substâncias, da química nuclear e dos polímeros. Avançou ainda no desenvolvimento e na utilização de poderosas ferramentas analíticas que, a cada dia, ajudam-nos a compreender mais e mais a extensão do nosso impacto no meio ambiente. Enfim Júlio, somos uma geração tecnológica, ligada 24 horas por dia em mídias digitais. Hoje, para você ter uma ideia, as ameaças para o início de um conflito começam via twitter.
É Júlio, as coisas tomaram um rumo inimaginável comparado àquela época. Melhor dizendo, a sua época. Segundo o historiador Yuval Noah Harari, no seu famoso livro intitulado Sapiens − Uma Breve História da Humanidade, a Revolução Científica dos tempos modernos enquadra-se em um ciclo de retroalimentação segundo a qual “(…) Para progredir, a ciência precisa de mais do que pesquisas. Depende do reforço mútuo de ciência, política e economia. As instituições políticas e econômicas fornecem os recursos sem os quais a pesquisa científica é quase impossível. Em troca, a pesquisa científica fornece novas capacidades que são usadas, entre outras coisas, para obter novos recursos, alguns dos quais são reinvestidos em pesquisa (…)”. E como se não bastasse esse ciclo, nos colocamos em uma sinuca de bico. Desde que detonamos a primeira bomba, em 16 de Julho de 1945, na cidade de Alamogordo, Novo México, – mesmo que de maneira experimental – ficou claro para todos que uma das mais nefastas consequências dessa Revolução Científica moderna era a capacidade, até então inimaginável, que poderíamos acabar a história evolutiva não apenas da nossa espécie como das demais. Isso sem falar no atual desafio da questão climática. Por tudo isso, Júlio, não seria surpresa alguma dizer que o limiar entre o progresso científico e o humano seja muito mais tênue do que outrora imaginado e escrito em seus livros.
Aqui no Brasil, ou melhor, nos brasis tá complicado, Júlio. O orçamento destinado à ciência e à tecnologia minguou a tal ponto que fica complicado falar em progresso científico. A respeito do futuro então, nem se fala. Quanto ao progresso humano? Talvez, a nossa escravidão, nunca findada, ajude a explicar por que continuamos a encarnar tantos males. Quem sabe por isso, alguns cidadãos ditos de bem estejam tão entrincheirados, aprisionados e envenenados por seu ódio que insiste em transbordar. Sabe Júlio, isso me leva a questionar se não existe algum marcador molecular para a falta de humanidade desses tidos como do bem? Mas sei que esse é um questionamento reducionista e simplório. Pensando bem, as diferenças entre mim e a pessoa que havia interpelado o meu amigo no passado são pequenas, frente ao esforço coletivo que terá que ser feito para mudar os rumos para o qual caminha a ciência e a sociedade do nosso país. Isso, se nada mudar!
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Referências Bibliográficas
Yuval Noah Harari (2011) Sapiens – Uma Breve História da Humanidade. 29α Edição. Editora Harper. Pág. 443.
Thiago Jucá
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