Cara, onde é que você tava? Disruptiva

quarta-feira, 10 junho 2020

Colunista convida a reflexão: o que poderemos dizer sobre inovação depois que o ano de 2020 terminar?

Estamos no ano de 2021. Segue o papo entre dois amigos, ocorrido em 01/01/2021:

[João] – Oi Ana, tudo nos trinques? Sabe quem aporta hoje?

[Ana] – Fala “Jão”! Não… Quem seria?

[João] – Nosso querido amigo Hiawatha, arquétipo de navegador, fã do Amyr Klink, aquele cabra que fez a circum-navegação da Terra entre 1998 e 1999, a bordo do veleiro Paratii!

[Ana] – Verdade! Como poderia esquecer do “Hia”, que endoidou o cabeção, juntou umas economias, endividou os pais e se propôs a refazer o percurso que o Klink fez para Antártica… Também pudera: um ano sem falar com um sujeito, a gente acaba esquecendo!

[João] – É mesmo. Mas o cabra é muito doido: partiu em 1º de janeiro de 2020 e retorna hoje, perto do meio dia,  exatamente um ano após zarpar. Temos que juntar a turma da “Facul” e ir ter com o brother. Ele tem muita coisa para contar.

[Ana] – Massa! Vou trocar uns “zaps” aqui para combinar de ver esse argonauta. Vai ser punk!

Fim do diálogo. Assim como o navegador Amyr Klink – e com orientação deste -, Hiawatha partiu de Paraty em 1º de janeiro de 2020 rumo ao Pólo Norte. O restante do texto mostra o mundo que Hiawatha encontra depois de um giro. Fim do primeiro ato.

O navegador Amyr Klink e seu veleiro Paratii.

Motivações

A turma da “Facul” à qual João se referia, Design de Naves da Faculdade Brilhante, era um curso superior com duração de 05 anos, com a missão de: “construir interfaces humanas para veículos incríveis”, o que incluía projetar vestes para pessoas – das mais variadas formas e adversidades -, de modo que estas se encaixassem perfeitamente um dado ambiente (ex.: macacão adequado para portadores de escoliose), até cabines para qualquer tipo de nave, desde de bicicletas a veículos maiores, obedecendo aos princípios de “incrivibilidade” definidos pelo curso: as naves deveriam utilizar força motriz de energia natural (Sol, vento, combustível biodegradável etc.) e, assim como as vestes, serem feitas de material 3R: Reutilizável, Reaproveitável ou Reciclável. 

“Hia”, como era conhecido em sua turma, enveredou nesta jornada por dois motivos: o primeiro tinha a ver com sua paixão, a construção de habitáculos para seres humanos. Estando no 2º ano do curso, achava que tinha de testar suas teorias continuamente. “Temos sempre que exercitar o pensamento Lean”, dizia ele. E prosseguia: “Construir-Medir-Aprender o tempo todo, todo o tempo. Não dá pra esperar 05 anos pra então testar o que aprendi. Tem que ser em tempo real… A tecnologia não pára. As pessoas não param. Em 05 anos estarei defasado”.

Hia, então, havia desenvolvido uma veste e uma cabine para incorporar a uma nave. Um veleiro seria perfeito, pois obedecia à regra dos 3R.

A outra questão, mais íntima, envolvia superação pessoal: além de querer dar um reset mental e provar para si mesmo que podia empreender de forma solitária, Hia sofria de Transtorno do déficit de atenção com hiperatividade, também conhecido por TDAH. Em seu âmago, ele percebia que as disciplinas que eram “executadas” faziam com que seus conteúdos migrassem e permanecessem mais facilmente em seu córtex, ao passo que aquelas com muito muito “blá-blá-blá” só faziam com que divagasse para bem longe dali. 

Assim, de uma tacada só, queria provar sua independência, capacidade de realização e no que o ensino da Faculdade Brilhante ainda poderia ser melhorado. Mesmo sendo uma das melhores escolas do país no quesito inovação, ainda – para ele – continha muitas disciplinas com conteúdos desnecessários ou descontextualizados.

Um ano entre mares…

No mar, o ano foi intenso, mais engrandecedor. Algumas tempestades, baleias brincando com o casco do veleiro, despertares com buzinas de navio ao pé do ouvido. Vez em quando, famílias de golfinhos faziam às vezes de anfitriões… Mas ele se sentia bem: não há como não se concentrar unicamente na jornada. Sentia-se como que curado do TDAH. O mar, definitivamente, era seu elemento.

A comunicação se dava por rádio. Mantinha conversas necessárias com o “controle da missão”, montado em sua casa, cujos integrantes eram sua mãe, geógrafa, perita em mapas e geolocalização. Seu pai, economista, responsável por toda intendência da viagem: quando comer, onde e por quanto tempo parar; seu tio, marinheiro da reserva, lhe passava os “macetes” de como se comportar em determinadas situações. Sim, e não menos importante, sua irmã caçula, Esther, que o animava com informações aleatórias indispensáveis: “Aquele teu amigo Zezinho tá namorando”. “Hoje teve uma live da Larissa Manoela” etc. etc. etc.

Entre um evento e outro, Hia aproveitava para consolidar algumas de suas teorias e refutar outras. Incrementou, por exemplo, a “Hipótese do Conforto da Cabine por Giroscópio”, dissertação de mestrado da faculdade, a qual defendia que “um sistema de giroscópio – que mantém sempre a mesma posição na ausência de forças que o perturbem -, suficiente para dar à cabine uma sensação de estabilidade, deixaria a viagem de longo tempo no mar muito mais confortável”. Flexibilizando um dos graus de liberdade do giroscópio, fazendo com que a cabine apresentasse um movimento similar ao de um balançar de rede de dormir, bom paraibano que era, comprovou uma melhoria substancial no sono. Chegou a essa conclusão após vários testes, por perceber que o cérebro humano sabia estar no mar, o que fazia com que achasse extremamente artificial navegar e, ao mesmo tempo, estar em um lugar fixo, causando um desconforto que denominou de Efeito Anti-Náusea. “Contra fatos, não há argumentos”, pensou ele. “Teremos que corrigir isto!”. Mais tarde foi rebatizado por Efeito Hiawatha, em homenagem a seu descobridor.

Foram tantas as observações e fatos obtidos – muitos divergentes daquilo que aprendera no laboratório, imaginem em sala de aula(?) -, que seus escritos fizeram parte de sua dissertação de mestrado, antecipada graças a seus feitos marítimos e intelectuais, transformando-se mais tarde em livro de referência para designers de cabine. Além de veleiros, seus achados foram também aplicados em diversos tipos de embarcação, como em carros e ônibus. Depois de instalado os assentos Hiawatha, como ficaram popularmente conhecidos, não se soube mais de pessoas vomitando em ônibus nem de crianças sem dormir em viagens longas de carro.

A “Facul” mudou, brother!

Terceiro dia de um ensolarado 2021, Hiawatha quase recuperado de uma soneca infinita de 24 horas, eis que uma galera animada bate à sua porta. Esther recepciona a turma: “Sim, ele já ‘tá vivo’. É aquele boy ali, exageradamente bronzeado e de lábios em flor!”.

Com um cerimonial de pós-adolescentes, irrompem a sala numa algazarra de fazer inveja ao Galo da Madrugada. Passadas as apresentações iniciais regadas a bebidas e salgadinhos, muitas conversas sobre a epopeia marítima, todos sentados em torno dele, começa um bate-papo acadêmico. A galera falando quase em jogral:

[Hia] – E nossa Facul, como anda? Tranquei um ano e tô voltando com novidades. O que vou encontrar por lá? Tenho que me preparar…

[Galera] – O ano foi atípico, “bródi”. Lembra daquela história de vírus em Wuhan? Pois é meu, a coisa pegou por aqui. Em meados de março, fecharam tudo. Todas as escolas tiveram que se reinventar e passaram a operar online. No começo foi difícil, pois o trauma gerou desmotivação e desinteresse por consequências. Mas aí, as plataformas ficaram mais parrudas, os professores mais desenrolados e a máquina começou a reaquecer novamente. Em agosto, tudo começou a voltar aos poucos. Em outubro, voltamos plenamente às salas de aula, mas com boa parte do ensino ainda online, pois parece que pegou. Foi uma revolução, bicho.

[Hia] – Como assim, “revolução, bicho”? Qual foi a mudança?

[Galera] – Pô, tu não percebeu não? Mudamos um bocado. Cara, onde é que você tava que não viu nada acontecer? A Esther não te falou não?

[Hia] – Sim. Vez por outra Esther me deixava a par de uma ou outra mudança aqui no continente. Mas, longe daqui, conversando com minha família por rádio, me senti distante, mas não desconectado. Não senti revolução nenhuma no diálogo com a família. Assim, não entendo qual a revolução que há entre estar ouvindo o “prô” lá no fundo da sala ou através de uma telinha. Qual a diferença? Qual foi a mudança de modelo? No que vocês avançaram? 

O papo acadêmico parou por aí. Com mais um pouco, a moçada foi embora e Hia voltou aos recônditos de seu quarto, ainda mais intrigado com a “nova” faculdade do que com aquela que deixara ao partir. Sua inquietação: “vão ver o que é ‘revolução’”! 

Carreira meteórica

Faltavam três anos para concluir o curso quando a jornada teve início. No retorno à faculdade, dadas às suas várias contribuições tecnológicas, Hiawatha conseguiu eliminar um ano e meio de disciplinas, graças a um artifício da Faculdade Brilhante denominado Notório saber & Notórios feitos. Com mais um ano concluiu seu mestrado, cujo título foi: “O Efeito Anti-Náusea: balançar não é tão ruim”. Virou um livro de referência na área. Como plus, ganhou um ingresso para realizar seu doutorado no conceituado MIT (Massachusetts Institute of Technology).

Como era versátil e mantinha na cabeça o lema “construir interfaces humanas para veículos incríveis”, depois de um sonho, viu a Faculdade Brilhante como um veículo de educação não tão incrível. Aí decidiu: já sei qual será minha tese de doutorado!

Com a tese em mãos, volta ao Brasil por causa de um chamado irresistível, aqueles que acometem muitos estudantes: ser professor da faculdade na qual fora formado! Trilha perfeita percorrida. Melhor do que goiabada com queijo! Submeteu-se à seleção. Tendo um livro de referência na área e adotado pela própria faculdade, foi barbada. Diz a lenda que os integrantes da banca de seleção pediram desculpas ao candidato, por ter de avaliar alguém cujas perguntas procediam do livro que ele mesmo escrevera!

A proposta

Em menos de um ano de cátedra, reconhecido como um docente tenaz, propõe implantar sua tese de ensino revolucionário na faculdade. Monta um modelo de negócio e o apresenta à direção. Perante cem professores, depois de vários “ais” e “uis”, surge uma proposição do conselho: você terá permissão e ajuda para implementar um MVP desse seu modelo em apenas um curso. Se conseguir validar, adotaremos gradualmente nos outros, até se tornar o modelo da faculdade.

Como o peito estufado, sai da sala um docente com um blueprint autorizado em mãos. Chegando ao corredor, pulsação a 120, respira e pensa: “Putzgrila, aceitaram. E agora?”.

A revolução da Faculdade Brilhante

O curso escolhido não foi segredo para ninguém. Reuniu vários alunos, alguns docentes, vários empresários – alguns ex-alunos e colegas de graduação -, e esclareceu os conceitos. Dias depois, estruturas contratadas, plataforma pronta, começam a rodar o MVP do curso de Design de Naves X (O “X” é a contração de “expandido”). Em termos gerais, esse era o modelo de negócios:

 Recursos principais:

– Aulas online padrão de trinta minutos: AP30

– Salas de verificação de aprendizado (a própria faculdade): SV

– Salas de prática espalhadas na cidade (uma espécie de FabLab): SP

– Áreas de teste em campo (fábrica, empresa, escola, hospital etc.): ATCampo

– Showroom para a sociedade: ShowS

Como funcionava:

Os alunos tinham que cumprir módulos teóricos compostos de AP30s específicas. Feito isso, a plataforma sinalizava que estavam prontos para as verificações nas SVs. Os próprios alunos reservavam seus assentos nas SVs e realizavam as verificações presencialmente. Recebido o “ok” da plataforma, reservavam as SPs com respectivos tutores (professores, especialistas, empresários etc.) para execução dos trabalhos práticos. Os aprovados nas aulas práticas, agora sob comando de um tutor da plataforma, recebiam convites para execução de projetos em campo, para que pudessem desenvolver produtos/serviços comerciais. Os aprovados nos ATCampos tinham o direito de exibir seus trabalhos para a sociedade nas ShowS, e receberem propostas por isto.

As aulas online, salas de prática e salas de verificação eram bancadas pela faculdade. As áreas de teste e showroom, pelos interessados externos, de modo que o sistema todo ficasse minimamente sustentável. É interessante ressaltar que nas ATCampos surgiam muitos novos modelos de negócio, dado ao choque de ideias que lá ocorriam. Resultado: muitas startups foram bancadas por investidores nesses locais, e as ATCampos ganharam fama de aceleradoras de empresa.

Finalizando…

Em um ano de MVP, Hiawatha e parceiros mostraram a viabilidade do Design de Naves X. O projeto foi tratado pela direção como uma verdadeira revolução na relação ensino-aprendizagem-conexão com a realidade. A direção autorizou a expansão para mais três cursos: um das Exatas, um das Humanas e outro das Sociais, com pequenas adequações, claro. Outro efeito colateral positivo e inesperado, foi o afluxo de estudantes com TDAH para o novo modelo de curso. Diziam eles que o “estilo do curso era motivante”! Hia sentia-se bem, pois acabara de criar uma “cabine educacional incrível” para os estudantes, baseada no conceito Lean. Ele mesmo transformou-se graças à jornada, totalmente pragmática.

Em 2028, aconteceu a reunião de 10 anos da turma. Muitos profissionais de várias áreas, alguns empreendedores, outros já pais, relembraram o ano de 2021, a epopeia marítima e a “revolução da Facul”. Nesse instante, Hiawatha completou aquele diálogo inacabado: Sinceramente, durante 2020, acho que só EU mudei… Onde é que VOCÊS estavam???

A inovação não foi de tecnologia, mas com ela! A revolução foi promovida mais tarde, por quem conseguiu entender como utilizar as ferramentas que já estão à mão. Reflitamos!

Referência:

Amyr Klink

A coluna Empreendedorismo Inovador é atualizada às quartas-feiras. Gostou da coluna? Do assunto? Quer sugerir algum tema? Queremos saber sua opinião. Estamos no Facebook (nossaciencia), Twitter (nossaciencia), Instagram (nossaciencia) e temos email (redacao@nossaciencia.com.br). Use a hashtag #EmpreendedorismoInovador.

Leia a edição anterior: Agora, até foguete dá ré!

Gláucio Brandão é Pesquisador em Extensão Inovadora do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.

Gláucio Brandão

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