Antonio Conselheiro liderou uma comunidade igualitária que funcionava como fábrica de dignidade humana. A Universidade Pública é a Canudos do século XXI
A ojeriza aos pobres parece ser um sentimento em alta no Brasil do século XXI. O tratamento pejorativo que é direcionado aos menos favorecidos vem da classe média e também dos políticos. No entanto, esta fobia que parece estar em alta é bem mais antiga do que se imagina. Os episódios que deixam mais evidente estas práticas vêm das experiências com as comunidades igualitárias. Por todo o planeta é possível identificá-las: são grupos que plantam, colhem, criam animais, compartilham da mesma terra e dos frutos de seu esforço.
O incômodo de todo este esforço coletivo reverbera nas elites e nos governos, tensionados pela necessidade de manter a mão de obra barata e dos impostos. E os relatos de conflito entre o Estado e as comunidades igualitárias vem desde a improvável China até o nosso país.
Para a consolidação destas experiências tem sido fundamental a existência de uma figura carismática que agregue as pessoas, fazendo-as acreditar em um futuro melhor. E desta forma, em comum, os líderes com este perfil passam a ser perseguidos pelos governos:
Jesus foi crucificado por apresentar boas novas que destoavam do velho testamento; Mandela foi preso por lutar pela igualdade racial; Ghandi foi perseguido por praticar “desobediência civil” quando jejuava ou pedia que as mulheres usassem roupas artesanais indianas… Por aqui, tivemos Antonio Conselheiro e seu povo que foi esmagado pela Republica por praticar a sustentabilidade no semiárido nordestino. Fazer com que o povo tivesse dignidade e três refeições diárias foi ação suficiente para levantar aquele que foi provavelmente o maior dos massacres promovidos pela república contra o seu próprio povo.
A construção deste processo passa por duas narrativas distintas: a possibilidade de libertação dos oprimidos e por outro lado as pechas que alimentem o ódio de parcela da sociedade (fundamentalista, louco, corrupto, estranho… o ódio alheio é fácil de ser tocado).
No caso de Canudos, o poder hegemônico impregnou a sociedade com a ideia de um messiânico louco e um grupo de fanáticos religiosos que poderia colocar em risco a recém instalada república. Para os sertanejos, no entanto, a figura de Antonio Conselheiro era de um líder espiritual que trazia a esperança da fuga dos impostos republicanos e de uma terra para plantar. E a promessa de condições dignas de sobrevivência fizeram de Canudos a segunda maior cidade da Bahia – população estimada em 25 mil pessoas no final do século XIX.
Porém, antes de povo, para os barões da época, os sertanejos de Canudos eram ex-escravos, índios e jagunços que deixaram suas funções de miseráveis mal pagos para serem donos de sua própria terra. Obviamente, para nossa elite, uma ação inadmissível.
E o que aconteceu a partir daí todos já sabemos: o exército foi em um total de quatro expedições, sendo derrotado nas três primeiras para enfim cercar o arraial e exterminar todos. Como relatado pelo próprio Euclides da Cunha:
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História resistiu até o esgotamento. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer. Quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram 4 apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.”
E assim teve fim uma comunidade igualitária que funcionava como fábrica de dignidade humana. E como dizia Cazuza, há museus de grandes novidades: e nos tempos atuais, muitas outras fábricas de dignidade vivem sob ataque de diferentes expedições.
Frentes estas que são dirigidas pelos donos do capital financeiro (antigos barões) que nunca acreditaram no fim da escravidão e neste intuito alimentam a miséria para manter viva a sua riqueza. A Universidade Pública é a Canudos do século XXI. Já aportaram em seus portões algumas expedições duras. Torço que a expedição atual não seja a derradeira.
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Leia o texto anterior: A saga para inovar no Brasil
Helinando Oliveira é Professor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) desde 2004 e coordenador do Laboratório de Espectroscopia de Impedância e Materiais Orgânicos (LEIMO).
Helinando Oliveira
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