A pesquisadora piauiense Sarah Fontenelle fala sobre os saberes e as práticas dos povos afro-latino-americanos
Na coluna desta semana, a pesquisadora piauiense Sarah Fontenelle põe na roda as sabedorias ancestrais dos povos originários de Abya Yala – a Nossa América – e dos povos afro-latino-americanos para evocar as potências do conceito de Bem Viver, e a pluridiversidade de práticas que nele se fundamentam, como caminho aberto e múltiplo para se opor à modernidade capitalista eurocentrada e colonial que está devorando subjetividades, grupos sociais e ecossistemas em nosso continente e pelo mundo afora. Um grito de conexão com os saberes e as práticas dos de baixo em um momento histórico em que vários povos irmãos da Nossa América estão se levantando contra um modelo econômico e social que privatiza o comum e precariza a vida. Sarah Fontenelle é doutoranda em Estudos da Mídia na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Bem Viver hoje ou vida nunca mais
Por Sarah Fontenelle Santos
Metafórica é a vida e a arte parece anunciar a cada obra o despejo de muitas mortes. Aldous Huxley em seu romance Admirável Mundo Novo, de 1932, criou uma distopia onde as pessoas eram programadas em laboratório e condicionadas a viver segundo o grande deus Ford. Cada pessoa era preparada para a consciência de classe que lhe cabia. Me chama atenção a passagem em que o diretor do laboratório explica, a um conjunto de jovens cientistas, a importância de condicionar as crianças da classe Delta a odiar os livros e as flores. Odiar os livros parece ser perfeitamente compreensível, pois não convém a uma casta inferior desperdiçar o tempo com leitura quando deveria estar fazendo funcionar as engrenagens. Mas porque odiar as flores?
“As flores do Campo e as paisagens, advertiu o diretor, têm um grave defeito: são gratuitas”. Huxley disse que projetou este futuro distópico para 600 anos adiante, mas, depois dos horrores das grandes guerras, afirmou já estar acontecendo.
A literatura anteviu o Brasil de hoje e o ódio à natureza, o horror de Mariana e Brumadinho e o suco de rejeitos tóxicos a que indevidamente chamaram lama (a lama, ao contrário, é parte sagrada do rio e manifesta, segundo a cultura afro, Nanã, a grande mãe primeira), previu o fogo proposital na Amazônia, o óleo nas praias do Nordeste e a indiferença de um governo, porque não é difícil para a literatura interpretar um mundo como uma prática que pretende tensioná-lo. Aliás, sem romantismo sobre os nordestinos que limpam as praias no braço, sendo estas a sua única alternativa de vida. É como dizem nas ruas: “os debaixo se movem, senão morrem”.
Sob esta metáfora é possível se ter previsto a vida de um país que para sair da sujeira prefere se refestelar no esgoto, elegendo o ódio ao Bem Viver, personificado em uma família que odeia a vida, a natureza e a história e, hoje ocupa a presidência e muitas cadeiras no legislativo (Familícia e seguidores).
Buen Vivir no Equador ou Vivir Bien, na Bolívia, Sumak Kawsay (kíchwa), Suma Qamanã (aymara) ou Nhandereko (guarani) é justamente a filosofia prática de uma vida que se opõe ao ódio e ao desprezo à natureza, sobretudo porque há uma inseparabilidade inalienável entre Ser e Natureza. Questiona o conceito de Bem-Estar, pois enfrenta a colonialidade do poder, o individualismo e o gozo da vida como mercadoria.
Esta filosofia, prática de vida, nasce dos ameríndios na Abya Yala. É precisamente a cosmovisão que uma vida moderna procurou naufragar sob os cascos das caravelas europeias, mas que em contra-colonização (na teoria do quilombola Nêgo Bispo, estivemos sempre contra-colonizando) teimosa vive e renasce hoje como a única possibilidade de adiarmos o fim do mundo, como incitam as palavras do indígena Ailton Krenak. Eles não anteviram que sabíamos nadar até em óleo, amigos que somos das águas doces e salgadas; não suspeitavam que cuspiríamos água e dialogaríamos com o fogo; não sabiam que o vento ia propagar uma contra-revolta enquanto o céu ensaia desabar, como diz a literatura indígena de David Kopenawa.
É por isso que a filosofia do Bem Viver como uma possibilidade global de pensar outra forma de vida nos fala dos direitos dos animais, dos mares, dos rios, das florestas, os direitos dos povos e suas cosmovisões. E se assim o faz, sendo um tanto por misticismo, é por entender que é preciso quebrar um dos elementos fundamentais da colonialidade/modernidade eurocentrada, que é o radical dualismo cartesiano que separa a “razão” e a “natureza”. Sob este radical se justifica a superexploração da natureza como ética produtiva no interior da economia capitalista. Tudo em nome do “progresso”, do crescimento sem fim e do “desenvolvimento”. Hoje é inadiável falar dos direitos dos povos quilombolas, dos povos dos mares, ribeirinhos, tradicionais, aqueles que biointeragem com a natureza.
Estou certa de que se tivermos a capacidade de olhar para trás (para os passado ancestral) e para baixo (na direção dos ignorados), no eixo que nos leva para à terra, para os pés, talvez tenhamos alguma chance de construir outro futuro hoje. Quero dizer, somente a cosmovisão afropindorâmica é capaz de nos salvar da colisão do tempo com a nossas práticas presentes.
E nosso caminhar começa hoje, porque o Bem Viver não é uma filosofia para quando o capitalismo acabar, mas é contemporânea a ele, na tentativa lúcida de barrar a lógica do crescimento exponencial irrefreável, na busca de dominar a natureza. É preciso ir devagar, é preciso decrescer, é preciso desacelerar, é preciso uma economia do decrescimento. É preciso criar uma economia, construir tecnologias e ciências capazes de conviver com seu entorno e cocriar, reinaugurando uma lógica subordinada à funcionalidade da natureza e à dignidade humana.
É preciso levar em consideração as tecnologias e as ciências de saberes ancestrais, para fugirmos da máquina programada e distópica do Admirável Mundo Novo de Huxley. É preciso outra economia, para um outro mundo, que deve começar hoje, em muitas ações de solidariedade e cooperação entre os povos. É como diz Stevan Mészáros, a máxima já não é socialismo ou barbárie, e sim ecossocialismo ou destruição, pois na barbárie já nos encontramos. Eu digo que é o momento do Bem Viver ou autodestruição, ou vida nunca mais. Não importa o nome que damos a esta saída, é preciso escapar.
Recorro a Aníbal Quijano para dizer que o tempo não está para brincadeira e exige de nós urgências diante da profunda reconfiguração do poder global capitalista: reprivatização dos espaços públicos; reconstrução do controle do trabalho e da produção; polarização social; superexploração da natureza; imposição de uma tecnocratização e instrumentalização da vida; mercantilização das subjetividades, sobretudo das mulheres; conduta egoísta travestida de liberdade individual; fundamentalismo religioso; uso crescente das indústrias culturais para impor um imaginário do terror.
Quijano nos disse isso em 2006, mas não chegou a ver sua Abya Yala com (des)governos de direita repovoando a nossa existência com uma truculência assustadora. Citemos o Brasil: reforma trabalhista e previdenciária; uma eleição recheada de tecnocratização por meio de fake news; propostas parlamentares para o agronegócio recolonizar legalmente as terras indígenas (além da tentativa mortífera de engendrar indígenas na cultura do agronegócio); aprovação imoral de cerca de 300 tipos de agrotóxicos, veneno na nossa mesa; aumento do número de feminicídios e subalternização das mulheres por um fundamentalismo religioso e as indústrias culturais nos dizendo que fiquemos no sofá, pois está tudo bem.
No livro Olhos D’água, Conceição Evaristo diz que “combinaram de nos matar e nós combinamos de não morrer”. E é assim que respondem os de baixo contra a recolonização capitalista. Chile: luta contra a mercantilização de todas as esferas da vida, da água, da precarização de idosos sem aposentadoria. Levantes no Equador, convulsão social em Honduras, Haiti e Peru. E a marca que rege a cor da maioria nas ruas é indígena, porque em toda América Latina a questão indígena é luta de classes, é sobrevivência, ensinando para o Brasil que “aquí no mandan los gringos, aquí mandan los índios”, como respondeu Evo Morales às tentativas de intervenção estrangeiras nas eleições nacionais. Lá onde o Bem Viver faz parte da Constituição, mas onde também os indígenas lutam para que esta expressão não seja capitulada pelas forças capitalistas e governistas.
A escritora e jornalista Svletana Aleksiévitch, ucraniana que viu o horror da explosão nuclear de Chernobyl, diz que naquele momento “o tempo mordeu o próprio rabo, o início e o fim se tocaram”. Eu creio que quando puseram fogo na Amazônia e o governo se recusou a agir em nome de todas as vidas humanas e não humanas que foram queimadas ali, o início e o fim colidiram. O início e fim colidiram em Mariana e Brumadinho, colidiram agora na massa densa de óleo que toma de assalto a vida e o trabalho no Nordeste. Foi o fim de uma humanidade, uma era inteira se perdeu ali e para os que se foram foi o fim; mas, como ele se chocou com o começo, este pode ser também um tempo de recomeço e o mundo todo tem a oportunidade de ficar mais sábio com esses apocalipses.
Mas é preciso coragem para ser sábio, é preciso de manha para recorrer à sabedoria da terra, à toda a encantaria, à sabedoria ancestral afro e indígena para que possamos fazer novos começos. Não acredito em nenhum novo começo que não leve à cabo a filosofia do Bem Viver, e digo mais, ou implementamos a filosofia indígena do Bem Viver hoje ou não teremos vida nunca mais. Os indígenas ianomâmis já previam que o céu ruiria sobre as nossas cabeças. Eles também nos ensinaram que o mundo não se acabará, mas o povo branco acabará o povo indígena e depois acabará consigo mesmo. Eu, pregadora do verbo esperançar, digo que é tempo de refazer humanidades capazes de biointeragir com a natureza muito além da lógica do sustentável, pois se continuarmos com a mesma matriz econômica do crescimento exponencial e infinito até quando vamos sustentar?
Antes que me chamem de “utópica”, “sonhadora” – e mesmo que chamem, eu estou aqui para te convidar a sonhar junto – eu digo que o Bem Viver existiu ontem na insistência do nosso povo em viver (nas aldeias, nas cidades, nos quilombos), vive hoje nos levantes populares, rodas de capoeira, em todas as formas de lutas que resistem contra o sistema colonial, capitalista, racista, machista e lgbtfóbico. O Bem Viver está aqui, sempre esteve.
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Leia a coluna anterior: Língua de opressão e resistência
Antonino Condorelli é Professor Adjunto do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Antonino Condorelli
Deixo é dispostas. Mentes e afetuosidades dispostas a biointeragir pelo Bem Viver. Que poiesis!