Descolonizar o pensamento a partir dos saberes localizados na comunidade indígena do Amarelão
Por Renata Laíze Alves Coelho Lins Paino Ribeiro
As eleições municipais que se avizinham têm sido atípicas: é a primeira vez que a eleição é realizada em novembro desde a redemocratização do Estado brasileiro, com a Constituição de 1988. Novembro, mês da consciência negra: de repente me vi envolta em pensamentos e questionamentos sobre representação, sobre o meu processo de auto identificação como mulher negra. Mais recentemente, o trabalho que comecei a exercer como assessora jurídica da comunidade indígena do Amarelão e a convivência mais próxima com as vivências das lideranças da comunidade através das reuniões com a diretoria da Associação Comunitária do Amarelão fizeram-me pensar sobre uma questão: como seriam as relações políticas na cidade se reproduzissem as práticas sociais e políticas da Comunidade do Amarelão? Mas antes de contar para onde me levaram tais pensamentos, quero primeiro compartilhar uma história.
Soltar os cabelos era um problema para mim há alguns anos. Logo que terminei a faculdade de direito, minha mãe sempre dizia: advogada tem que estar com os cabelos arrumados. E ela, mesmo sendo uma mulher negra, sempre alisou os cabelos. Então, qual a referência que eu tinha? Comecei cedo, e estar em ambientes tradicionalmente ocupados por pessoas brancas quase que inconscientemente me trazia uma necessidade de “embranquecimento”; alisar os cabelos era só uma das muitas estratégias para fugir da rejeição e gerar uma pseudo passabilidade. Em um grupo de trabalho no IV GRIOT realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Norte em 2018, coordenado pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia Social, uma jovem estudante de Serviço Social, usando turbantes, trouxe a discussão sobre os limites das políticas afirmativas de cotas raciais quanto à manutenção dos estudantes quilombolas e indígenas na Universidade Federal do Pará. Ao final de sua brilhante exposição, recitou uma poesia que me fez cair em prantos. A narrativa da viagem de travessia do Atlântico, os corpos feridos, a alma marcada de repente fizeram que me olhasse como em um espelho e que me via naqueles meus ancestrais. Era tanta dor que foi inevitável resistir à corrente de lágrimas que jorravam sem que conseguisse parar. Foi ali que, enfim, soltei os cabelos!
Passei a me aceitar como mulher negra e lésbica. Estive casada com outra mulher que, como o marido de Lélia Gonzalez[1], foi uma grande incentivadora do minha auto identificação como mulher racializada e da construção política da minha autoidentificação.
Esse processo foi atravessado também por várias questões atinentes ao retorno para a academia, pela decisão de me inscrever como aluna especial do mestrado do Programa de Pós Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e pelas várias violências simbólicas e institucionais que implicam o rompimento dessa demarcação territorial e epistemológica da construção de saberes, passando pelo reconhecimento de que a facilidade de aprendizagem de forma audiovisual pode ter a ver com a perspectiva ancestral da tradição oral. Nesse processo também encontrei Tayse Campos, liderança indígena da Comunidade Indígena Amarelão, da etnia Mendonça Potiguara, aluna da mesma disciplina de mestrado.
Desde então, começamos a somar esforços para auxiliar nas demandas da Comunidade do Amarelão, com ações pontuais na esfera judicial para solução de demandas como a Tutela de um adolescente indígena que havia perdido o pai e a mãe.
Com a chegada da pandemia da covid-19, a comunidade do Amarelão que trabalha com beneficiamento de castanha de caju, passou a não ter como ter acesso as castanhas e com isso não tinham como trabalhar. As demandas por alimentação e recursos mínimos de sobrevivência passaram a ser prioridade.
E é nesse ponto que comecei a observar como se portavam as lideranças indígenas através da Associação Comunitária do Amarelão – ACA. A primeira providência foi saber a situação de cada setor e cada família. A associação, através de sua liderança, passava orientações sobre os cuidados com a saúde diante da covid, recebia as demandas da comunidade que sucessivamente eram oficiadas perante as instâncias governamentais do município de João Câmara e da Secretaria de Assistência Social do Estado do Rio Grande do Norte, informando sobre as mais de 340 famílias e mais de 1.100 indígenas que estavam em completa vulnerabilidade social e quanto aporte de alimentos e materiais de higiene seriam necessários para atender a comunidade.
Fazer-se ver parece ser uma vocação da Associação, mas em tempos tão precários era preciso gritar para ser ouvido. Diante da gravidade da situação e da demora dos entes públicos, tivemos a ideia de fazer uma campanha pelas redes sociais. Uma amiga fez a arte, um flyer para divulgação no Facebook e no Instagram. Foram contatadas associações de bairros como a Amigos de Capim Macio. Sindicatos, a Cáritas e vários parceiros aderiram à campanha que conseguiu suprir inicialmente a demanda: após pouco mais de um mês, assistentes socais do município visitaram a comunidade e encaminharam as demandas de cestas básicas e, em parceria com a Secretaria de Educação do município, enviavam alimentos para as crianças matriculadas na escola comunitária, que iniciou suas atividades em 2019. Já o governo do Estado do Rio Grande do Norte demorou alguns meses para encaminhar 200 cestas básicas para a comunidade.
Sempre que as doações chegavam, o salão da Associação era organizado. O território possui 340 famílias, mas nem todas são associadas. Segundo estatuto da Associação, a participação na Associação é voluntária, assim como é voluntária a contribuição de cinco reais por família, havendo vários projetos durante todo o ano que trazem benefícios à toda comunidade e alguns especialmente para as famílias associadas. O critério para se associar é apenas residir no território, mas as decisões atinentes a como se daria a distribuição das doações foram tomadas coletivamente, através de representantes de cada setor, que é composto por um ramo familiar, e que tem representação na Diretoria da Associação. Dessa vez, diante da grande vulnerabilidade, todos concordaram que as cestas básicas e materiais de higiene doados seriam distribuídos conforme a necessidade, independentemente de se as famílias eram ou não associadas. Toda a distribuição era feita de forma organizada e com muito respeito e dignidade, a liderança anotava os dados família que assinava um formulário do que estava recebendo.
O calendário dos projetos e festividades da comunidade teve importante alteração com a pandemia. Sem receber visitantes, a festa da castanha com o toré, ritual para atrair boas energias, que tradicionalmente ocorre no mês de agosto, não ocorreram em 2020; mas, aproximando-se o Dia das Crianças, perguntando à liderança sobre como pensava em fazer e tendo como resposta que provavelmente não teria como realizar a tradicional festa das crianças, uma inquietação me fez propor o desafio de conseguir parceiros para realizar a festa, comprar presentes e lancheiras. Ao levar essa demanda para o grupo Amigos de Capim Macio, alguns amigos pessoais toparam aderir ao projeto e em uma semana conseguimos arrecadar o suficiente para comprar 250 brinquedos e lancheiras que foram distribuídos pela liderança – com o cuidado do distanciamento – às crianças da comunidade do Amarelão. Naquele dia fui apresentada por Tayse como assessora jurídica da Associação e dos Associados e realizei um atendimento de um caso de racismo praticado contra três mulheres que tiveram o direito a um documento negado por serem indígenas. Chamou-me a atenção como se deu a distribuição dos brinquedos. Depois de explicar a importância de brincar, de ter tempo de ser criança, Tayse fez a chamada das crianças por idade, que se organizavam em fila; cada criança recebia uma lancheira, se aproximava de uma grande bancada onde estava expostos os brinquedos e escolhia o que queria dando lugar para a próxima criança. Quando ficava em dúvida, alguma criança se dirigia a umas das lideranças, que também é professora na escola da comunidade, para perguntar se seria um bom brinquedo educativo, e saia feliz com o balançar da cabeça de forma afirmativa. Foi um dia emocionante que prova como a intenção e a ação articulada pode fazer com as demandas sejam solucionadas com a parceria e adesão de várias pessoas de boa vontade.
Mais recentemente, em uma reunião de planejamento para o ano de 2021, pude perceber que a Associação tem departamentos específicos que atuam de forma planejada propondo ações estruturadas para formação política e social, bem como para atendimento de demandas importantes para a comunidade como o acesso à água, com projetos de cisternas, visto que atualmente a água chega na comunidade através de carros pipa e existem poucas cisternas, o que é planejado pelo departamento de etnodesenvolvimento. Há também o departamento de gênero e geração, que pensa questões relacionadas ao dia da criança, por exemplo, ou palestras sobre violência doméstica, ou o projeto da festa dos idosos do mês do Dia do Idoso, dentre outros departamentos que pensam coletivamente as ações a serem realizadas e depois compartilham para a aprovação pelo grande grupo.
Depois de ver essas forma de gestão do associativismo, eu me perguntei: como seria uma cidade governada por essas lideranças? As pessoas seriam ouvidas em suas demandas, as ações seriam planejadas a partir delas, haveria representação de todos os que seriam beneficiados pela ação nas esferas de decisão. A partir da identificação das demandas e do quanto de aporte financeiro seria necessário, iriam-se buscar parceiros para implementar as ações, e de forma organizada e transparente seriam trazidos os resultados delas.
É certo que a complexidade dos grandes centros traz implicações que podem limitar essa articulação, mas com tanta tecnologia será que não seria possível que as decisões políticas sejam tomadas com efetiva participação popular?
É sabido que, no sistema de representação eleitoral, o voto é a forma como podemos ter a nossa voz ouvida, e então cabe a todos nós nos perguntarmos: será que estou escolhendo um vereador e um prefeito que vai ouvir o que minha comunidade precisa e irá procurar meios para fazer com que a nossa necessidade seja atendida, ou vou continuar apenas reproduzindo a voz do colonizador que apenas pinta meio fio a arruma as quadras na época de eleição?
[1] RATTS, Alex, RIOS, Flávia M. Lélia Gonzalez: Retratos do Brasil Negro. Selo Negro, 2019.
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Leia a coluna anterior: Por uma comunicação integral e holística reconectando os sentidos
“Epistemologias Subalternas e Comunicação – desCom é um grupo de estudos e projeto de pesquisa do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte”.
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