As línguas são organismos vivos relacionadas com experiências dos sujeitos falantes, suas ações e interações que afetam e constroem realidades Linguaruda

segunda-feira, 26 agosto 2024
Linguaruda, assim, no título desta coluna, não é a mulher que “fala demais”, é a que se recusa a ser silenciada e que ousa questionar e expressar seu ponto de vista. (Foto: Elza Fiuza/Agência Brasil)

Para inaugurar esta coluna “Linguaruda” no Nossa Ciência, Cellina Muniz aborda um pouco a relação entre língua e significados.

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Qualquer pessoa que se proponha a estudar a linguagem, sendo linguista ou não, sabe que a semântica – o nível atrelado ao significar – é tão constitutivo da língua quanto o fonológico (dos sons), o morfológico (das palavras) e o sintático (da organização entre as palavras). E, como qualquer um desses níveis, a semântica das línguas não é uma camada unívoca e estanque, mas sim uma pluralidade movente, sobretudo porque as línguas são, elas mesmas, organismos vivos que acompanham as complexas dinâmicas da sociedade. Assim, os significados não estão “engessados” na língua e nos seus campos semânticos e têm a ver com nossas experiências no mundo, nossas ações e interações que afetam e constroem realidades.

O filósofo russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) atentou para essa característica ao atribuir às línguas um caráter “polifônico” e, a depender das condições de uso, os signos linguísticos podem expressar sentidos múltiplos e bem diferentes. E isso encarado não apenas em perspectiva diacrônica (isto é, ao longo do tempo, em que, por exemplo, o “vossa mercê” deu lugar ao “você” e, ainda, em certos registros escritos, ao “vc”), mas também sincronicamente, ou seja, numa mesma época (em que “garota” convive com “boyzinha”, por exemplo).

Ressignificações

Nessa direção, pensemos em um processo chamado ressignificação. A filósofa americana Judith Butler, em livro intitulado “Discurso de ódio: uma política do performativo” (na tradução de Roberta Viscardi para a edição brasileira da Editora da Unesp), explica que se trata de empregos de linguagem (e de seu poder de ação no mundo) que buscam simultaneamente revelar e combater um exercício ofensivo de discurso. Partindo daí, a linguista Marie-Anne Paveau explora a ressignificação, especialmente em contextos digitais de uso, e amplia as características da ressignificação: uma prática linguajeira, linguística e material de resposta a um enunciado ofensivo, efetuada por um sujeito agredido pela autocategorização ou recontextualização simples, que estabelece um retorno do enunciado ofensivo num contexto alternativo, o novo uso sendo aceito coletivamente e produzindo uma reparação e uma resistência (ver “Ressignificação em contexto digital”, Editora da UFSCar).

Por muito tempo, designar uma mulher como bruxa, estava associado a conferir-lhe um significado pejorativo.

Pensemos, por exemplo, na palavra “bruxa”. Por muito tempo, designar alguém – uma mulher – como bruxa, esteva associado a conferir-lhe um significado pejorativo, largamente expresso pelos estereótipos de mulher feia e má  perpetuados nos clássicos contos de fada. Com a ampla difusão de tendências religiosas e  espiritualistas de cunho neopagão (como a Wicca, por exemplo) e também graças a obras como as de Silvia Federecci (em livros como “O Calibã e a Bruxa” e “Mulheres e Caça às Bruxas”), questionam-se agora tais significados, ditados em sua gênese por estruturas patriarcais e misóginas de poder. Nessa problematização, o vocábulo bruxa adquire outro significado, num processo de ressignificação que valoriza, sobretudo, os saberes ancestrais e, principalmente, a autonomia feminina, tão cerceada pelos “machos” de plantão de ontem e de hoje.

Visões de mundo

Os processos de ressignificação são importantes para ilustrar o caráter polifônico das línguas, em que os significados não são só da esfera semântica e lexical, mas também são de ordem ideológica, isto é, expressam visões de mundo e modos de produção e de organização das pessoas e grupos identitários em sociedade.

Cada termo ou palavra que é reapropriada e ressignificada ilustra também embates entre sujeitos diversos, em usos que se contrapõem diante de algum exercício opressivo de poder. Ressignificar é resistir. Uma resistência que comprova a concepção bakhtiniana: a de que as línguas são mesmo uma arena de luta entre muitas vozes. Linguaruda, assim, no título desta coluna, não é a mulher que “fala demais”, é a que se recusa a ser silenciada e que ousa questionar e expressar seu ponto de vista. Não admitimos mais que rotulem como ideal a mulher quieta, silenciosa e calada. É preciso reinventar os rótulos. É preciso ressignificar.

Cellina Muniz é escritora e professora do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Cellina Muniz

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