O aquilombamento não é apenas um conceito, mas uma prática viva, é uma postura que deve ser incorporada na essência do Jornalismo.
(Alice Andrade)
Os quilombos, historicamente, surgiram como uma resistência ao colonialismo, servindo de guarida e afirmação principalmente para os povos africanos e afrobrasileiros escravizados no Brasil. Beatriz Nascimento, renomada historiadora sergipana, destaca que, a partir da década de 1970, o conceito de quilombo se reconfigura e ressurge como uma resposta ao colonialismo cultural. Nesse contexto, os quilombos reafirmam a herança africana e se estabelecem como uma tecnologia que fortalece a identidade étnica ainda nos tempos de hoje. Essa reapropriação do quilombo atualmente se transforma em uma importante ferramenta de resistência e valorização da cultura negra, inspirando movimentos contemporâneos – inclusive no jornalismo.
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Isso porque, em oposição ao domínio colonial da mídia hegemônica e ao racismo tantas vezes perpetuado em produtos midiáticos, grupos de comunicação autodenominados mídias negras se inspiram na lógica quilombola para produzir um outro tipo de jornalismo: uma prática que se aproxima da luta antirracista e se posiciona diretamente contra quaisquer tipos de opressão.
Podemos entender que, na perspectiva da comunicação midiática, mídias negras referem-se a veículos de comunicação que surgem da necessidade de representar e amplificar as vozes e experiências da população negra. Atuam como plataformas que desafiam as narrativas dominantes, oferecendo uma perspectiva antirracista e diversa sobre questões sociais, culturais e políticas. Exemplos como Mundo Negro, Alma Preta e Negrê exemplificam essa proposta, pois seu conteúdo envolve, além da informação jornalística, também a educação e a sensibilização sobre temas relevantes e pouco problematizados pela imprensa comercial, como racismo, identidade, genocídio dos povos negros e direitos humanos.
As mídias negras têm os quilombos como um verbo: o aquilombamento, que é levado em conta como uma prática ancestral que representa resistência, dinâmica e coletividade entre pessoas negras. Se historicamente os quilombos serviram como refúgios, onde a liberdade e a cultura afrobrasileira eram semeadas, hoje essa filosofia guia a existência de pessoas negras, inspirando-as a resistir em qualquer tempo ou espaço onde haja necessidade. Assim, os grupos de mídia negra criam um espaço seguro para histórias, memórias e questionamentos que frequentemente são silenciados ou invisibilizados.
Cabe destacar que esses grupos também são um espaço seguro de trabalho para profissionais negros, que encontram nas redações um lugar que valoriza tanto suas subjetividades quanto as técnicas jornalísticas formais. Contudo, a presença de jornalistas negros não deve se limitar a uma representação visual. É fundamental que esses profissionais tenham autonomia para pautar questões importantes e problematiza-las. Em mídias negras, as pautas antirracistas devem ser uma prioridade nas redações. Isso significa abordar temas que vão além da superficialidade e explorar a profundidade das vivências negras.
Embora estejamos focando nas mídias negras sob a perspectiva de grupos jornalísticos, é importante ressaltar que o conceito de mídia negra vai além. O corpo, a arte e outras formas de expressão também podem ser consideradas mídias nesse contexto. Danças, performances, literatura e fotografia são maneiras poderosas de comunicar experiências, histórias e identidades afrobrasileiras. Essas expressões culturais documentam vivências, mas também desafiam estereótipos e promovem diálogos sobre questões raciais. As mídias negras se configuram como um campo amplo e multifacetado, em que cada forma de expressão contribui para a construção de narrativas coletivas e a afirmação da identidade negra.
Assim, a atuação antirracista no jornalismo também implica reconhecer as estruturas de poder que moldam a comunicação. Muitas vezes, essas estruturas perpetuam estereótipos e narrativas que matam, física e simbolicamente, as pessoas negras em nosso país, conforme reflete Abdias Nascimento. O aquilombamento é uma prática que nos ensina a desconstruir esses padrões, promovendo uma comunicação que respeita a diversidade e a complexidade das experiências negras em um exercício de jornalismo como um espaço de luta e afirmação.
Evoco a reflexão da professora Sarah Fontenelle Santos, que aqui no Nossa Ciência, afirma: “Contracolonizar o jornalismo é se deixar impregnar nas epistemologias de todas as gentes, vivas e não-vivas, humanas e não-humanas”. A partir de sua proposta, percebe-se a importância de abrir espaço para diversas formas de conhecimento na produção jornalística. Esse processo é essencial para o jornalismo que busca ser verdadeiramente inclusivo, pois ao reconhecer, visibilizar e valorizar essas epistemologias, as redações podem enriquecer suas narrativas, incorporando múltiplas perspectivas. O jornalismo antirracista, portanto, deve se propor também contracolonial.
A prática do aquilombamento no jornalismo, por conseguinte, é uma jornada contínua, um eco histórico que ressoa há séculos nas vidas de pessoas negras. Para que essa transformação ocorra, é necessário um compromisso genuíno com a inclusão e a luta antirracista. As redações devem estar dispostas a aprender e a mudar. Esse caminho é um compromisso. Ao ser guiado pela matriz do aquilombamento, o jornalismo das mídias negras cumpre sua função social, mas também se torna uma força poderosa para pensar novos caminhos possíveis.
Para o historiador Edison Carneiro, os quilombos foram um acontecimento singular na vida nacional. Digo que ainda são. O aquilombamento não é apenas um conceito, mas uma prática viva. É uma postura que deve ser incorporada na essência do jornalismo e, somente assim poderemos avançar em direção a uma comunicação verdadeiramente antirracista. No passado, no futuro ou no presente, ainda é tempo de aquilombar.
Alice Andrade é jornalista, professora e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos da Mídia (PPgEM/UFRN).
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Alice Andrade
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